i- dos olhos meuscansada e com fome, encerro a minha jornada de quarta-feira no supermercado mais próximo de casa, ávida por um lanche que me enchesse além do estômago, os olhos.
a pressa, sempre maior em mim do que a sofisticação me obriga a ir para o caixa com apenas alguns pãezinhos de sal quentinhos, recém saídos do forno.
a caixa, uma mulher inusitada, jovem e robusta, de cabelos moicanos bem curtos e alguns piercings pendurados no rosto, sorri para mim enquanto pesa os pães transpirando dentro do saco. De repente, me encara com uma atenção inédita e pergunta:
- esses olhos são seus mesmo?
o que responder? me lembrei da chapeuzinho, do lobo e bobices do tipo. pensei em dizer algo espirituoso. achei melhor não.
acabei balbuciando, surpresa:
- sim...? - de quem mais seriam, eu pensei aturdida.
eis que ela os mira mais profundamente ainda e prossegue:
- parecem de gato - e faz uma pausa quase dramática - eles brilham no escuro, sabia?
não, não sabia.
paguei e saí.
com os olhos que nem sabia que tinha.
ii - das metamorfoses diáriasmeu tio conta que andando uma vez com meu priminho - uma criança bastante agitada de cinco anos - pelo shopping center de sua cidade, foi de súbito impedido de prosseguir ao perceber que o filho não andava mais ao seu lado.
não era a primeira vez que o perdia de vista, ele contou.
parou e olhou ao redor. lá estava ele. atrás de si, rolando no chão emporcalhado do primeiro piso. e também não era a primeira vez, ele acrescentou.
apreensivo que se tratasse de mais uma birra, ele tentou cortá-la pela raiz, buscando o menino pelo braço, fazendo-o se levantar.
ao que meu primo, resiste e retruca, impaciente:
- peraí, pai. só mais um pouquinho... - é que eu vou me transformar num tigre.
iii- dos acenos distantespresenciei na semana passada um encontro entre desconhecidos, um homem e uma mulher que há muito não se viam. um quase encontro talvez, pois entre ambos havia a distância uma rua e duas calçadas. e algumas árvores.
o rapaz, bem mais jovem que a moça em questão retribuiu ao aceno simpático dela depois de alguns instantes. como que para justificar talvez a sutil demora ele lhe gritou por sobre os ombros, pois do outro lado da rua ela já se afastava:
- eu quase não te reconheci, hein! - me lembro do exato momento em que pensei que esse comentário poderia tranquilamente invadir as tênues fronteiras do tato social.
quando ele não esperava mais um resposta - e eu tampouco -, já cruzando a esquina, ela acrescenta alto suficiente para que ele e eu ouçamos:
- É, eu sou assim mesmo... uma camaleoa!
presença de espírito, babe. de onde eu venho, é assim que eles chamam.