sábado, 31 de janeiro de 2015
"Carmen"
"tu mentes"
e com isso a lembrança
de algo que desperta na
noite sem ter ainda
o controle dos membros:
o senso dos
tornozelos não se conecta
ao restante do corpo.
somente sonhos e confusos
enredos mesclados em
novelo noturno.
tu mentias e eu sempre
soubera:
a lembrança
de choques elétricos?
tu evocas
em mim a experiência
dos sapateados de Saura:
balaôras com mãos
ascendendo e dedos
circulares: braços
sinuosos acenando
a tragédia
que viria
[Jose & Carmencita]
a ancestral cigana
de toda mulher
reta ou oblíqua
possui ou se deixa
possuir
"tu mentes"
e a mentira cresce
como ossos e a
musculatura régia
que encalacra
os tecidos, rompendo
interstícios e compromissos.
"tu mentes e eu sei
que mentes",
é tudo que eu preciso
acreditar sobre a noite.
é preciso que Carmen
venha como é, como
deve ser. que seja
adaga e engano, com
olhos de lobo, seu passado
cigano conduz ao
nosso presente.
penso que há algo de
magnânimo em permitir
ao destino cumprir
seus piores desígnios.
o preço de vislumbrar
cordilheiras e quedas
infinitas
não é a morte.
"fio"
"estamos por um fio"
tua arcada dentária
perfeita
articula a frase
com cadência
cristalina,
e aqui, a
abertura de frestas, nesgas
de sombra nos olhos,
nuvens que penetram pela
boca, e as gengivas
: a boca não esquece -
o fio que se tece
é frágil como dois coelhos
e um único cajado que seja.
Si diz que que um fio
de artérias
liga os corações de todos
os amantes.
é verdade:
há um amor
que não se esquece
, feito de tudo
o que é feito de rocha
, que é feito de início
e que faz borda.
"estamos por um fio",
são as palavras
que ficam
o fio
não termina
aqui" - estamos por um
fio" - estamos no
fino terrivelmente
fino limite que nos
trouxe aqui, afinados
como cordas que se
tocam / vibram em si
[em sol, em suspenso,
lá - aqui - aí]
há buquês sustenidos
que desabrocham
timida-mente
sobre a mesa, sobre a
minha pele eriçada
pelos teus dedos úmidos.
sobre a mesa, sobre a
minha pele eriçada
pelos teus dedos úmidos.
"estamos por um fio",
não estamos, meu amor,
você é a maior coisa
do mundo e o fio
não é onde estamos
: é o que nos constitui
inteiramente.
inteiramente.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
Татьяна/Тетяна/Татјана
eu,
que sempre
comecei tudo
com muito medo,
que comecei
com o pé esquerdo
[porque o teu nome
tem mar
no início
e isso há de provocar
muito medo
nos mais corajosos
marujos de primeira
e última
viagem
e mesmo nas doces
criaturas marinhas
que ouvem nas docas
a tua história
sussurrada em espuma
de ilha]
teu continente
é meu
pequeno combate
e a verdade é que
não era
não havia
nunca havia sido
possível
escrever
: ainda não o é
a dupla caça
de asas retiradas
com precisão cirúrgica
deixam a forma de algo
único
fantasma do que era
promessa,
quando muito.
essa dificuldade
amaciada
do feminino
que me dá
contorno
é pura invasão
de domicílio
circulo
um grito
como a pantera
de rilke,
mas não
muito,
há que sentir
o pulo
em si, de
si -
e sob o som
de discretos
aplausos
a cortina se
fecha
e os órgãos
silenciosamente
voltam
a seus
lugares
porque eu sempre
tive medo
e foi a única coisa
de mim
que tive
[ afora o gato
sentado no peito
e o arpão no discurso ]
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
"Noir"
faço votos
para que o talho
[a ferida melódica
no teu discurso]
trespasse o teu gesto
no escuro
e afugente de vez
o mal
porque nos fulge
um apelo
ao corpo
cósmico
deste universo de avalanches
que nos cobrem
em gloriosa aventura
de facas de cozinha escondidas
às pressas
e comprimidos,
e chuveiros ligados
e tempestades elétricas
acuadas em apartamentos
de dois cômodos, sem rotas
de fuga.
tenho tido soluços, arrepios
na base da espinha dorsal,
na base da questão.
tenho esperado, com insistência febril
por uma revolução sonar
de decibéis inaudíveis;
tenho implorado re-pe-ti-da-men-te
por um romance policial noir
e pela existência de Norma Desmond
em minha mão
imbuída
de todas
as más intenções.
não tenho certeza se
caibo
nesta pequena vida
que diviso por entre
a janela da sala,
por entre nesgas de compromissos
e heteronormatividades de conduta
e filhos gêmeos - ainda não
nascidos.
ana,
que virar do avesso é, de fato,
uma experiência
mortal.
porque eu preciso da dúvida
: dessa incerteza corriqueira,
[essa sim letal]
sobre a existência de algo
verdadeiro,
sobre a existência de algo
verdadeiro, sobre a existência
de algo verdadeiro
que resista.
sobre a existência que resista
a algo de verdadeiro, euprecisoda dúvida
que resista
a algo de verdadeiro
sobre a existência.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
ás de copas invertido
abre-se
no maço de cartas
um destino
em copas floridas
um império de coisas
que
sangram
e substâncias
oblíquas
essa vontade de mergulhar
irremediavelmente
no outro
sem tomar fôlego,
pé
um distanciamento da
superfície
um desatino
me aguarda
enquanto lambo
dedos
de fogo
até que adentrem
a garganta
e o peito
desguarnecido
a natureza do beijo
me esgota
novamente
em puros lírios
sofro sangro
os dias
para que eu
nunca
esqueça
para que tu não te esqueças
dos trilhos, para que aceites
o destino que esquadrinho
sem
pestanejar
no maço de cartas
um destino
em copas floridas
um império de coisas
que
sangram
e substâncias
oblíquas
essa vontade de mergulhar
irremediavelmente
no outro
sem tomar fôlego,
pé
um distanciamento da
superfície
um desatino
me aguarda
enquanto lambo
dedos
de fogo
até que adentrem
a garganta
e o peito
desguarnecido
a natureza do beijo
me esgota
novamente
em puros lírios
sofro sangro
os dias
para que eu
nunca
esqueça
para que tu não te esqueças
dos trilhos, para que aceites
o destino que esquadrinho
sem
pestanejar
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
"oxóssi-caçador"
tua queimadura de sol
invoca a existência
de um metabolismo secreto
pois, quando gotas do tamanho
de gatos siameses
pendem
pelos teus cílios compridíssimos,
teu corpo inaugura
essa dança de exílio
: porque o amor é a causa de tudo
que levanta v o o
e pousa sem memória.
a hora do chumbo
é nossa
pois há algo
de profundamente tocante
no teu desespero ígneo,
no torpor vaporoso que tomba
de nosso limbo doméstico;
há algo de bárbaro
no desalento único, tão teu,
na sombra de dois corpos
consonantes
e por isso mesmo aterrorizados,
prodígio do fulgor
de carne, dentes, pele
e pelos.
nosso
caso é antigo, oxóssi caçador -
flecha disparada na mata cerrada.
note a rosa dos ventos
esculpida no teu peito e aceite
o que há
: uma constelação nossa reservada
há séculos, por anos-luz
[siga as setas, siga a água]
invoca a existência
de um metabolismo secreto
pois, quando gotas do tamanho
de gatos siameses
pendem
pelos teus cílios compridíssimos,
teu corpo inaugura
essa dança de exílio
: porque o amor é a causa de tudo
que levanta v o o
e pousa sem memória.
a hora do chumbo
é nossa
pois há algo
de profundamente tocante
no teu desespero ígneo,
no torpor vaporoso que tomba
de nosso limbo doméstico;
há algo de bárbaro
no desalento único, tão teu,
na sombra de dois corpos
consonantes
e por isso mesmo aterrorizados,
prodígio do fulgor
de carne, dentes, pele
e pelos.
nosso
caso é antigo, oxóssi caçador -
flecha disparada na mata cerrada.
note a rosa dos ventos
esculpida no teu peito e aceite
o que há
: uma constelação nossa reservada
há séculos, por anos-luz
[siga as setas, siga a água]
Mossoró
Mossoró I
A primeira daquelas que seriam as duas mais inquietas crianças paridas por minha avó coroou logo no início das chuvas minguadas do 'inverno' fictício do norte, 1959. Fora, ao menos, um parto não muito abafado, a única coisa de que podia se gabar de fato a mãe, pois depois de dezesseis horas de dilatação negativa, a primeira filha viera ao mundo grande e loura, quase fraturando sua bacia, com os ombros curvos do esforço inédito de nascer, curvatura que manteria adulta pela consciência do medo; o rostinho largo e olhos redondos, atentos, faróis luzidios de uma curiosidade que também sustentaria em notável medida pelos anos seguintes, mas não por toda a sua existência, é preciso dizer. Era muito pouco parecida com o irmão, três anos mais velho, a pequena beldade da família, que deslizou como quiabo maduro das pernas para os braços de minha avó em menos de 30 minutos.
"A criança não come", minha avó logo notou. Chupetava o peito quente e empedrado de leite com grande serenidade, mas não sugava propriamente. Acostumou-se a contragosto com a mamadeira, mas seus apetites variavam com as flutuações da lua, ora faminta, ora demonstrando desdém por todos os agrados achocolatados, passando incólume pelo mel e canela que minha avó acrescia ao leite de vaca na tentativa de agradar a sua menina difícil.
Crescia forte, a despeito disso e cada vez mais mostrava traços de uma personalidade crítica, uma sofisticação anacrônica que a ensinou a preparar as suas próprias refeições antes dos cinco anos completos.
Rio de Janeiro II
Virá em breve.
Araruama III
As obsessões seriadas seriam um hobby, quando nada mais poderia ser. A paixão seria desmontada como uma complicada parafernália infantil, reformulada do avesso, porque não importaria mais aquilo que se perde. Mas, sim, os blocos, os pedaços ingurgitados, acrescidos a si, como apêndices mágicos e temporários, perfeitos em seu mistério com prazo de validade determinado e então, quando desvendados, finalmente: o vazio, o platô insuportável e uma nova paixão - uma obsessão fresca e impensável - haveria de ser forjada, ou todo o mecanismo, a engrenagem imprescindível pereceria perigosamente.
Não há realidade cotidiana que resista aos efeitos tóxicos de uma boa, ou até mesmo de uma má ficção. Os personagens literários, masculinos e complexos, haveriam de ser uma substituição suficiente, com algumas vantagens, inclusive, pois os personagens masculinos ao alcance da mão, ou das pernas, não seriam satisfatórios até que um elemento dramático se imiscuísse, sorrateiro e trágico, tornando-os mais semelhantes a uma ficção qualquer que fosse, barata e impregnada dos lugares-comuns que matam lentamente. Homens casados, uma gravidez indesejada, um aborto clandestino, a desistência de uma filha. E quando faltassem os personagens, viriam os criadores: os escritores, com sua vida difícil e atravessada por um sentido misterioso, dardejante, arpões cósmicos com um centro magnético programado, eles seriam secretamente idolatrados - e mimetizados até os limites da própria capacidade ou da habilidade literária.
Mas todos os caminhos levam de volta ao platô, de onde nada escapa e tudo converge, eventualmente.
O nível de dificuldade sofreria com os anos um aumento inversamente proporcional ao funcionamento do seu próprio metabolismo e os personagens escasseariam, doentes e radiografados por um dispositivo incansável que substitui e derruba, que esvazia e apresenta novidades, como uma fábrica de brinquedos, examinada, contudo, com uma atenção científica e cruel. E viriam as ficções televisivas seriadas, com plots epopeicos e personagens novinhos em folha. Sucederiam-se as paixões, uma a uma, com sua existência circunscrita a cada universo ficcional, frágeis e intensificadas por uma febre renovada a cada episódio. E o lento esvaziamento viria, certo como o entusiasmo voltado para o novo personagem da temporada seguinte.
Em seguida, as artes plásticas. Tubos e tubos de tinta acrílica para tela, aquarelas e crayons, a escolha de diferentes gramaturas e planos maquiavélicos para a compra de uma prensa para gravura acalentados com seriedade infantil. Os experimentos, realizados sempre em tamanho diminuto, como amostras amadoras de um projeto ambicioso, sempre escondidos em pastas, longe dos olhos, ocultos por um constrangimento silencioso que seria responsável pela nova obsessão: o artesanato. Retalhos e retalhos de roupas velhas descosturadas, planos de quilts e macramé, toalhas e barras de vestido bordados em ponto de cruz, teares e tapetes em rag rug. A descoberta da estética boho: bohemian + soho e o início assustador de uma coleção de barbies temáticas, desde buffy, a caça-vampiros até scarlett o'hara.
Jung, yoga e I ching.
Amendoins assados no forno e programas de culinária vegetariana. E a militância pelas árvores na internet.
E se perguntam pela filha, ela está aqui. Com você. Segue com os olhos as invenções semanais e o desbunde renovado a cada estação. Não basta saber que viver é difícil, tem que viver junto.
Eu te amo, mãe. Em cada obsessão que você porventura enveredar.
A primeira daquelas que seriam as duas mais inquietas crianças paridas por minha avó coroou logo no início das chuvas minguadas do 'inverno' fictício do norte, 1959. Fora, ao menos, um parto não muito abafado, a única coisa de que podia se gabar de fato a mãe, pois depois de dezesseis horas de dilatação negativa, a primeira filha viera ao mundo grande e loura, quase fraturando sua bacia, com os ombros curvos do esforço inédito de nascer, curvatura que manteria adulta pela consciência do medo; o rostinho largo e olhos redondos, atentos, faróis luzidios de uma curiosidade que também sustentaria em notável medida pelos anos seguintes, mas não por toda a sua existência, é preciso dizer. Era muito pouco parecida com o irmão, três anos mais velho, a pequena beldade da família, que deslizou como quiabo maduro das pernas para os braços de minha avó em menos de 30 minutos.
"A criança não come", minha avó logo notou. Chupetava o peito quente e empedrado de leite com grande serenidade, mas não sugava propriamente. Acostumou-se a contragosto com a mamadeira, mas seus apetites variavam com as flutuações da lua, ora faminta, ora demonstrando desdém por todos os agrados achocolatados, passando incólume pelo mel e canela que minha avó acrescia ao leite de vaca na tentativa de agradar a sua menina difícil.
Crescia forte, a despeito disso e cada vez mais mostrava traços de uma personalidade crítica, uma sofisticação anacrônica que a ensinou a preparar as suas próprias refeições antes dos cinco anos completos.
Rio de Janeiro II
Virá em breve.
Araruama III
As obsessões seriadas seriam um hobby, quando nada mais poderia ser. A paixão seria desmontada como uma complicada parafernália infantil, reformulada do avesso, porque não importaria mais aquilo que se perde. Mas, sim, os blocos, os pedaços ingurgitados, acrescidos a si, como apêndices mágicos e temporários, perfeitos em seu mistério com prazo de validade determinado e então, quando desvendados, finalmente: o vazio, o platô insuportável e uma nova paixão - uma obsessão fresca e impensável - haveria de ser forjada, ou todo o mecanismo, a engrenagem imprescindível pereceria perigosamente.
Não há realidade cotidiana que resista aos efeitos tóxicos de uma boa, ou até mesmo de uma má ficção. Os personagens literários, masculinos e complexos, haveriam de ser uma substituição suficiente, com algumas vantagens, inclusive, pois os personagens masculinos ao alcance da mão, ou das pernas, não seriam satisfatórios até que um elemento dramático se imiscuísse, sorrateiro e trágico, tornando-os mais semelhantes a uma ficção qualquer que fosse, barata e impregnada dos lugares-comuns que matam lentamente. Homens casados, uma gravidez indesejada, um aborto clandestino, a desistência de uma filha. E quando faltassem os personagens, viriam os criadores: os escritores, com sua vida difícil e atravessada por um sentido misterioso, dardejante, arpões cósmicos com um centro magnético programado, eles seriam secretamente idolatrados - e mimetizados até os limites da própria capacidade ou da habilidade literária.
Mas todos os caminhos levam de volta ao platô, de onde nada escapa e tudo converge, eventualmente.
O nível de dificuldade sofreria com os anos um aumento inversamente proporcional ao funcionamento do seu próprio metabolismo e os personagens escasseariam, doentes e radiografados por um dispositivo incansável que substitui e derruba, que esvazia e apresenta novidades, como uma fábrica de brinquedos, examinada, contudo, com uma atenção científica e cruel. E viriam as ficções televisivas seriadas, com plots epopeicos e personagens novinhos em folha. Sucederiam-se as paixões, uma a uma, com sua existência circunscrita a cada universo ficcional, frágeis e intensificadas por uma febre renovada a cada episódio. E o lento esvaziamento viria, certo como o entusiasmo voltado para o novo personagem da temporada seguinte.
Em seguida, as artes plásticas. Tubos e tubos de tinta acrílica para tela, aquarelas e crayons, a escolha de diferentes gramaturas e planos maquiavélicos para a compra de uma prensa para gravura acalentados com seriedade infantil. Os experimentos, realizados sempre em tamanho diminuto, como amostras amadoras de um projeto ambicioso, sempre escondidos em pastas, longe dos olhos, ocultos por um constrangimento silencioso que seria responsável pela nova obsessão: o artesanato. Retalhos e retalhos de roupas velhas descosturadas, planos de quilts e macramé, toalhas e barras de vestido bordados em ponto de cruz, teares e tapetes em rag rug. A descoberta da estética boho: bohemian + soho e o início assustador de uma coleção de barbies temáticas, desde buffy, a caça-vampiros até scarlett o'hara.
Jung, yoga e I ching.
Amendoins assados no forno e programas de culinária vegetariana. E a militância pelas árvores na internet.
E se perguntam pela filha, ela está aqui. Com você. Segue com os olhos as invenções semanais e o desbunde renovado a cada estação. Não basta saber que viver é difícil, tem que viver junto.
Eu te amo, mãe. Em cada obsessão que você porventura enveredar.
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