Desencaixotando Rita

Desencaixotando Rita
Powered By Blogger

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cinema mudo



Ainda me lembro da ocasião em que Cora se decidiu. Seria atriz - ela me disse, contemplando embevecida os saltimbancos multicoloridos e acalentando com doçura, eu pensei, os luminosos prospectos de uma longa vida nos palcos ou nas telas, ainda antes de completar sete anos de idade.
- Quero fazer isso, mamãe! - ela disse impaciente, segurando firme a minha mão enquanto descíamos a escada do teatro da escola, entre diversos outros pais apressados e suas respectivas crias.
- Isso o quê? - eu perguntei, divertida com o seu ar de seriedade e a agitação úmida que percebi em sua voz.
- Isso! - e apontou o dedo trêmulo para os atores que, ainda fantasiados, abraçavam crianças na saída do teatro - algumas muito pequenas, assustadas e chorosas, suplicando aos pais com olhares de completo terror que viessem em seu socorro.
- Você quer ser atriz, Cora? - eu a encarei, mas ela já havia se soltado da minha mão, correndo desabalada em direção ao gato da peça, que dava piscadelas charmosas enquanto minha filha se agarrava contumaz em seus quadris felpudos e rajados, sem o menor constrangimento.
Penso que a partir daquele momento, ela passou a compartimentar com particular intensidade as imagens e os mais minuciosos gestos vistos em cena, guardando-os dentro de si. Não apenas dessa peça em especial, eu quero dizer, mas de todas as outras, mais até: de tudo o que ela assistia enquanto espectadora, platéia ou mesmo como simples figurante, transeunte, pois como era boa Cora em ficcionalizar as situações mais rocambolescas, partindo dos acontecimentos mais banais e corriqueiros. Sabia extrair - como fazia? - com precisão cirúrgica o núcleo dramático de uma conversa; recontava histórias, sempre acrescentando versões, desdobrando vozes inauditas.
Então nos anos que se seguiram começaram os cursos e as oficinas. E os espetáculos, os testes de elenco, os castings.
Eu assistia a lenta transformação que foi se operando na pequena. A primeira mudança que lhe notei foi um apagamento paulatino dos seus trejeitos infantis. Não foi sem espanto que observei a expressão original de Cora - tão profunda e meditativa - se esvaziar para em seguida ser preenchida por um espectro de diferentes gradações de olhares, de vozes, tons e gestuais, que passaram a se alternar. Compreendi naquele momento que minha filha estava experimentando.
Sentia seus grandes olhos castanhos, cingulados - os olhos da minha mãe - me examinando e, capturada em minha distração, eu sabia que ela me imitava em segredo, levando o pai às gargalhadas.
Ela experimentava. Diferentes personas, sotaques longínquos e tragédias gregas. Espelhos dobráveis e uma polifonia de vozes que ela orquestrava ainda tão pequena, como se soubesse o que estava fazendo. E sabia, ela me assegurou tempos depois:
- Eu sinto que há algo em mim. - e pausou, olhando subitamente as próprias mãos - Não sei explicar, mãe. Mas é um espaço vazio. E desse espaço vazio, sei que há lugar para algo falar, existir. Como se qualquer pessoa pudesse existir, falar em mim, através de mim...
- Falar, Cora? - eu indaguei, confusa - Mas do que é que você está falando?
Ela suspirou decepcionada:
- Você não entende.
Ofendida, eu retruquei, embora de fato não houvesse entendido naquele momento:
- Se você explicar melhor, talvez eu entenda.
Me lançou ela um olhar de holograma, vago e impreciso, como se desistisse de algo e falou bem baixo:
- Não tem nada para explicar.
Isso aos dezesseis. Nessa época, já podíamos assistir Cora retornar para casa pestanejante ou deslizando como uma vamp dos anos vinte ou mesmo errática, falando a língua verborreica e catártica do teatro do oprimido.
Difícil era prever.
Aos dezenove ela inaugurou a fase do cinema. Não teve dificuldade para se adaptar. Modulou o timbre da sua voz, aparou as arestas dos gestos mais arrojados, diluiu a imponência das passadas e a amplitude da sua respiração. Trocou sem dor as cenas, os atos pelos quadros e planos-sequência e quando estava prestes a completar vinte e um anos, começou a trabalhar em um papel que afirmou ser o papel de sua vida.
Tratava-se de um filme especial, sem dúvida. De fato, Cora esteve soberba do primeiro momento até o final. Não havia um diálogo sequer em todo o filme e os atores se comunicavam através de uma linguagem cifrada, pantomímica, cuja chave de compreensão era, no entanto, deixada ao alcance de nós, espectadores.
Não tenho certeza, contudo acredito que talvez por isso, pude perceber o momento exato em que se passou o silêncio derradeiro. Compreendi por fim, naquela cena final, quando Cora emprestava à sua personagem a potência expressiva de mil sóis, desvelando camadas e camadas de densidade humana difíceis de externar, o que é que falava por ela. Isto é, do que é que minha filha falava quando tentou me explicar o que a movia para a cena, para o palco.
Compreendi do que se tratava justamente no momento em que, o que quer que fosse, se calou. Foi com uma tristeza serena, porém não com surpresa que, depois daquele filme, escutei Cora declarar que jamais atuaria novamente.

5 comentários:

  1. Temos um impostor entre nós.

    E.,

    o real

    Ps: Belo texto.

    ResponderExcluir
  2. me lembrou o gesto de Agnes, do "imortalidade" (milan kundera)... também me fez lembrar que aos dezesseis as pessoas ainda são crianças.. e me fez querer ler o livro que se vela a volta desse fragmento, e supõe ele.

    ResponderExcluir
  3. Muito legal! Lendo o artigo de Italo Calvino sobre a leveza, penso que o conto passeia pelas coisas que não podem ser ditas.
    Mamma loves you!

    ResponderExcluir

Comentam por aí...