para suzana pessoa
você insiste
no clareamento forçado
dos meus cabelos
aparentemente lera um artigo
sobre uma técnica de suavização
de traços a partir da falsificação
de molduras capilares
e de alegrias insuspeitas
às quais sabe que sou alérgica
"é que o preto
enche o teu rosto
de sombras"
você decide ignorar que o preto
é na verdade uma pequena homenagem
que presto
ao corvo invisível
que segue pousado
no meu ombro
há uns bons anos
você pesquisa
sobre as 30.000 espécies
de escaravelhos
há horas você pesquisa sobre o egipto antigo
há dias você escuta a cacatua da vizinha
berrar como se estivesse assombrada
você jura ter sido
visitada por um escaravelho dourado
na noite anterior
mas tem dúvidas se o bicho era apenas
um besouro luminoso ou talvez uma barata
geneticamente modificada
o fato é que você não sabe o que fazer
e nós duas sabemos que isso é um perigo
você o isola dentro de um pote de ervilhas
esvaziado há tempos de seu conteúdo
mas segue acordada
a noite inteira
angustiada com seu escaravelho
preso dentro do pote vazio de ervilhas
debatendo-se
na cozinha
o corpo arrendondado
a emitir uma luz sobrenatural
você sabe que é bem possível
que isso seja um sinal
um indício ou uma distinção
uma nobreza inusitada
entre seus colegas artrópodes
menos aristocráticos
você teme
e retira o amor do poema
planeja uma corajosa operação de soltura
respira aliviada quando o bicho
compreende exatamente o que tem de fazer
e quando você o deixa livre
ele voa
voa com agilidade
para bem longe
sem olhar para trás
você se sente finalmente livre
para voltar a pensar nos cupins
que roem a estrutura da casa
do sofá e das portas e armários
a gata presta atenção aos ruídos
inaudíveis aos ouvidos humanos
os ruídos
de uma lenta demolição
você estremece e devolve o amor
de novo ao poema
sente agora uma certa liberdade para pensar
nas pequenas feras
no amor
na casa
na madeira nas paredes
nos ruídos inaudíveis
a todos
os ouvidos
salvo os da gata
cuja atenção se volta
para um murmúrio em particular
fora do seu alcance
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