Como aparentemente hoje é um dia de esgotar todos os possíveis sentidos da palavra 'caixa', resolvo abrir mais uma. Depois de ter sido 'encaixada' a contragosto, lá vou eu desencaixotar mais uma das várias que se enfileiram por aqui, acumuladas, empoeiradas. Uma caixa especial.
A dos vinte anos.
Embora eu me veja, sem dúvida, intimamente constrangida diante da intensidade pueril do texto, ainda assim eu posto.
Ainda é um mistério para mim ser possível que alguns dos sentimentos meus de cinco, dez e até quinze anos atrás apresentem uma semelhança univitelina - tão siamesa! - com o que eu sinto hoje. Como se a Rita de hoje compartilhasse algo de inteiriço, indivisível até, com as de antes.
É estranho reconhecer que mesmo não sendo eu a mesma, há definitivamente algo que permanece. Que atravessa a minha vida - e me atravessa - e me define, quase conferindo um suave contorno à minha indefinição.
Posto ainda porque hoje, cinco anos depois, além de ser surpreendida pela semelhança, pela atualidade destes sentimentos, não posso deixar de rir de mim mesma (a de hoje e a de antes).
É com uma certa complacência, quase materna até, que eu olho essas palavras escritas tão convictas e jorradas, numa urgência que eu conheço tão bem.
Na mesma urgência, mas com um humor mais sóbrio e autocrítico, constato que permaneço a mesma dramática de cinco, dez anos passados.
Algumas coisas são insolúveis. Fazer o que?
Hoje eu quero algo que me derrube. Uma bebida forte, rápida.
Que desça destilada pela garganta e que ofenda durante o percurso. Que faça tudo girar em menos de vinte minutos. Para que eu possa girar junto, como uma bailarina trôpega na meia-ponta, subindo. Degraus imaginários e os que surgem do nada.
Um tapa.
Mas eu não quero anestesias.
Eu quero a dor que supera a agonia. Minhas unhas sendo arrancadas com pinças, alicates.
A dor que dói e arde, que lateja. Que chega, se instala e nunca me deixa. Aguda. Agulha. Fina, insistente. Forte e estridente. Quieta e latente.
A dor que não me abandona. Que não sai pela porta e me esquece. Aquela que anoitece e acorda comigo, sóbria ou sorridente.
Que não mente. A dor que sente, que é sentida. Que é triste, comovida, simples e descolorida.
Eu quero uma dor minha. Verdadeira, dramática e sangrenta. Eu quero um vestido antigo dos anos vinte com paetês pálidos e pérolas desbotadas, esquecido. Quero a dor compartilhada com um amigo.
Quero ser de verdade. Pessoa e não personagem. Sair dos quadrinhos preto e branco para uma floresta tropical. Com cobras que picam e se enrolam em mim; macacos e micos pequenos e mosquitos; aranhas e formigas. Para eu matar e cozinhar para você.
Eu quero a dor de ter alguém. De perder. De não esquecer, de doer, doer, doer.
Eu quero a dor de dormir, acordar e ainda estar lá.
A dor de ser. A dor de ser uma. A dor de ser duas. A dor de ser sua.
Eu quero aceitar a dor de estar sempre sóbria mesmo quando bêbada. A dor de nada.
Obrigada, aceito. A dor que foi comprada e a que não foi. A dor que virou piada e aquela, podre, que nem foi contada.
Eu quero ser amada. E amar.
E odiar e depois relevar.
E amar. E doer.
Doer e sangrar. E ficar triste porque a escova de dente comprada nunca foi usada. Porque o isqueiro foi esquecido na minha cabeceira. E você ficou na minha cabeça. Doendo. Sangrando.
Sagrado. Imaculado. Uma mancha esbranquiçada, viscosa no meu vestido negro.
Tão injusto. A dor que não pedi.
Eu não pedi. A dor de não existir mais. Não existir mais para você.
Atropelada e ensangüentada. Ossos quebrados e vísceras misturadas.
Eu era. Eu fui. Agora não mais. Eu não dôo mais.
Eu ruí e desmoronei de uma única vez.
Agora não sinto mais.
Parei.
Bapho essa dos 20 anos. Que intenso!
ResponderExcluirEu confesso que tenho um misto de vergonha e carinho maternal por esses textos semi-adolescentes, tão 'antigos'.
ResponderExcluirFico em dúvida se a intensidade aparente dele(s) - porque de onde esse veio ainda tem bem mais - apenas mascara a minha própria indiferença brutal.