Desencaixotando Rita

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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Aonde vão parar as lapiseiras perdidas?

Questão que me acompanha desde a infância.
Aliás, escuto ainda agora, como um eco longínquo, mas não perdido por completo, a voz indignada da minha mãe a me perguntar precisamente isso.
Às vezes era a lapiseira que ia embora primeiro. Mas canetas e borrachas partilhavam frequentemente o mesmo destino.
E eu ficava com o refil ora 0.7mm, ora 0.5mm, a chacoalhar solitariamente dentro da desordem multicolorida e fragmentada do meu estojo - antes de ser ele também misteriosamente dragado pelo buraco negro da minha mochila.
Já naquela época, tive consciência que não se tratava de uma questão de espessura. Perdia todos, finos ou menos finos.
Era outra coisa.
Aonde vão parar as lapiseiras perdidas?
Seguro a pergunta por mais um momento. Mas já aviso que não o faço para suster o impacto de uma possível resposta ou postergar o suspense de uma conclusão mirabolante.
Porque a verdade é que não tenho resposta alguma. Não faço idéia de onde vão parar; ignoro para onde foram.
Nem bem sei inclusive por que me lembrei disso.
Quer dizer, até sei. Mas preferia não saber.
Ontem, por uma (mais uma) das improváveis e rocambolescas circunstâncias da minha vida, fiquei sem luz. Quase o dia todo.
O autor do crime? Um disjuntor desarmado.
Desarmada estava eu diante da dificuldade inextrincável de uma porta trancada. Explico. Ocorre que o bendito desarmou durante o meu banho quente e a beleza indizível das coisas consiste no fato de que a caixa dos disjuntores do meu prédio é exterior aos apartamentos. Fica na portaria.
Portanto, o meu disjuntor estava lá embaixo, desarmado, dentro de uma portinha que se apresentou para mim cerrada, trancada à chave.
E a chave? Com o zelador ou o porteiro. Aonde? Sabe-se lá. Feriado tem dessas coisas.
Por volta das oito e pouco da noite, depois de ser lentamente engolida por uma penumbra que se mostrou estranhamente acolhedora, eis que a verdade dos fatos sofre uma completa torção e se revela.
Não havia tranca. "Era só puxar com força." - nas palavras da síndica.
A luz retorna.
Dou-me conta de que, de alguma forma, algumas portas não estão realmente trancadas. E mais: algumas vezes, abrem minha porta sem que eu perceba. E por essa brecha se esgueiram mil coisas.
Por exemplo a pergunta. E um rastro dolorido de coisas com ela.
Emerge com ela a pergunta sobre a qual equilibra-se todo o meu desassossego - em blocos maciços e trôpegos.
Aonde vão parar as coisas que eu perco?
Normalmente, evito o quanto posso essa pergunta. Passo veloz e me faço de desentendida. Mas hoje não consegui.
Por algum motivo, escancararam-se coisas com a abertura desta porta. E que coisas?
Nada mais do que lampejos. E dos mais fugazes até.
Por um átimo, tive um vislumbre da minha vida enquanto trajetória, da minha própria história.
Todas as pessoas-farol que de alguma acenaram algum rumo entrevisto nos momentos mais ou menos turbulentos; toda a pequenez (e a inevitável sordidez das pequenas coisas)do que eu sou e das pessoas que eu fui.
De onde eu vim. O chão que recebeu os meus passos - quase sempre - titubeantes, na ponta dos pés.
Por onde eu andei? Como eu vim parar aqui? Não era claro.
A minha cidade diminuta e embolorada, atrasada; as coisas pelas quais eu me apaixonei e desapaixonei. Aquilo que me envergonha. Até hoje.
As pessoas que eu perdi.
Tudo isso me atingiu em um intervalo compacto e vertiginoso. Como pode? - eu pergunto.
Foi suficiente para desengavetar meses e meses de emoções cuidadosamente represadas, confinadas até segunda ordem e, que eu considerei até então irrecuperáveis.
Vou dizer que doeu um bocado.
Era disso que eu sempre fugi. Percebo.

É. Declaro o fim da anestesia. Não amorteço mais nada. Lapiseiras à parte, se é para doer, que doa.

Um comentário:

  1. Queria a anestesia de volta. Agora percebo que importante função ela tinha.

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