Desencaixotando Rita

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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

nina ou exercício-final-para-oficina-literária-nunca-entregue-por-conta-de-uma-ressaca-de-mojito

nascida no final de uma tarde bafejante de dezembro, no clarão súbito da tempestade de de verão, nina veio ao mundo para compor a sexta geração de mulheres feiticeiras em sua família.
à noite, pouco depois de sua mãe, mare , dar à luz, a avó, nascida também sob o signo dos raios, anunciou à filha que aquela criança vinha de muito longe e que não ficaria muito tempo entre eles.
mare, que era filha da água salgada como todas as irmãs, logo banhou a recém nascida, ungindo-a de lágrimas abundantes, sentidas. não quis acreditar que a pequena partiria tão cedo, logo a primogênita.
perguntou à mãe se não havia maneira de manter a criança por mais tempo.
"isso será ela quem vai decidir", esclareceu vó raio. e acrescentou "vê, ela nasceu com a marca de sandu; traz no espírito a terra que vira fogo e esses pés, você vê?", ela pegou a recém-nascida de ponta-cabeça, "esses pés foram feitos para andar debaixo da terra, lá onde não existem palavras".
a mãe mare soluçou e vó raio sentenciou ainda, comovida "se a menina ficar aqui por muito tempo, não será bom para ninguém, minha filha", "está vendo os olhinhos?", vó raio mostrou e mãe mare percebeu que os olhos de nina estavam bem abertos e arregalados.
"esse brilho vermelho vai crescer e crescer, e quando ele for tão grande que se põe a engolir os olhos da criança, é sinal que não tarda ela a partir para o seu mundo"

mãe mare deu de beber seu leite quente à nina e prometeu que manteria a filha junto de si o quanto pudesse.
contudo, antes de aprender a andar, nina já desaparecia sem deixar vestígios e passava dias sem voltar para casa. vó raio procurava tranquilizar a filha.
"ela precisa comungar com os seus. não podemos fazer nada".
mas nina sempre reaparecia, com o sorriso sem dentes e os olhos cada dia mais vermelhos.
aparecia nos lugares mais improváveis da casa. quase matou vó raio de susto quando uma vez encontrou nina dentro de uma das caçarolas no armário, com um filhote de camaleão aninhado no peito.

e nina chegou assim aos cinco anos. sem pronunciar uma palavra.
andava pela vizinhança, mas sem ser percebida, como que protegida por um véu invisível.
um dia, vó raio notou que a menina estava a brincar com as nuvens. pegou-a no alto de uma árvore com os bracinhos estendidos a comandar as chuvas e os ventos.
sorria e piscava os olhos rubros, incandescentes, como se tudo não passasse de uma brincadeira.
vó raio avisou a filha mare.
"a criança está cada vez mais quente, não sente?"
a mãe abraçou nina com sofreguidão e no horror daquele abraço sentiu no corpinho calefado e mirrado da filha o coração, um coração que rugia.
um ronco surdo substituíra as batidas do coração da pequena e o corpo de nina pulsava no ritmo do interior da terra.
mãe mare afrouxou o abraço e olhou a filha nos olhos. nina retribuiu o olhar, afagando o rosto da mãe, para sair em seguida pelo portão, com os passinhos rápidos e curtos.
vó raio e a filha a seguiram, ainda atordoadas.
o que viram eram estarrecedor. nina havia mesmerizado a rua inteira.
sentada no chão, ela batucava uma espécie de tambor e todos ao redor pareciam capturados, dançando alucinados em um frenesi rufante.
mãe mare e vó raio observavam atônitas o que parecia ser um ritual desconhecido de ambas. e sem que notassem, no inverso do clarão que a trouxera, nina não estava mais lá.