Desencaixotando Rita

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terça-feira, 28 de setembro de 2010

Em defesa do desvio do olhar






às vezes
é perigoso olhar.




Em nome das mulheres pretensamente tímidas (eu mesma, um exemplar que enrubesce vez por outra), defendo a arte da esquiva do olhar.
Mulheres tímidas sim, que recebem bem o calor de olhos pousados sobre si, que ousam até, a passos cautelosos sempre, e que dissimulam a própria irreverência escopofílica com os desvios, as sinuosidades ofídicas de um olhar que se refrata em viés. Que escapa ao outro.

Falo, veja bem, de um direito inalienável de ser arredia aos olhos alheios.

Justifico.

Existe poucas maneiras tão potentes de capturar, enredar algo ou mesmo alguém quanto através do olhar. Há quem destrua, há quem seja demolido por um desses, ouvi falar.

Mas nem tanto, nem tão pouco. Não falo de feitiçaria ou magnetismo.
Falo mesmo do desvio, não da fuga. O que me refiro é o olhar que mira, que contempla, que se assusta e que se ausenta, por decisão.

Aqueles que sabem do que falo, sabem que há sempre o perigo do desmascaramento, quando se trata dos olhos. Um olhar ao mesmo tempo pode desvelar ou encobrir, pode contar histórias e desnudar as palavras mais encapeladas, peça por peça, em seu traje completo a passeio.

Ser olhada sempre esconde o risco





de retribuir o olhar.






Créditos das imagens: Tara McPherson

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

sobre uma vivência de penúria extraordinária

na companhia de uma gata no cio adormecida (sem metáforas), a verdade é que contemplando possibilidades lúgubres aqui no abafamento tijucano do meu quarto e soslaiando a perspectiva de um fim de semana falido [é sempre preocupante quando ainda na quarta-feira se constata o precoce desaparecimento do dinheiro], eu chego a algumas conclusões.

é preciso procurar algumas alternativas. explorar diferentes potenciais. arriscar, sabe? nem só de psicólogas mafiosas e psicanalistas de araque [como fui gentilmente chamada essa semana] se fazem as ritas. afinal, são precisamente tais momentos penosos, momentos cruciais e edificantes, de nos confrontar com as limitações mais frustrantes, que conhecemos os trunfos, os ases na manga. os recursos pessoais ocultos.

creio que quanto a isso, não se trata do momento de cultivar aquela modéstia saudável, isto é, aparar as arestas do ego em benefício de uma aceitação social superficial. em absoluto. acredito que estou me dirigindo à crista do turning point da minha própria vida. é hora então de assumir as minhas [im]potencialidades e não-vocações seriamente. chega de negligenciar ou minorizá-las; é chegada a vez de encará-las de frente e investigar suas reais oportunidades de lucro.

vejamos.

fazendo um levantamento das minhas habilidades latentes (e também as mal-aproveitadas), confesso ter me surpreendido. são bem mais numerosas do que eu supunha.

bem, descobri que organização e senso prático, infelizmente, não constam entre elas. portanto, toda a idéia era: 1) mapear esses talentos inutilizados e 2) buscar-lhes uma aplicação rentável em seguida.

missão nº 1 cumprida. eis o resultado da minha auto-investigação:

[por uma licença poética/didática não fiz distinção entre as habilidades, os talentos e as facilidades. ah, a missão nº 2 foi cumprida na medida do possível, dadas as tensas configurações do mercado no momento]

- é possível perceber, evidentemente, que possuo qualidades investigativas inequívocas. penso, portanto, que estou apta a ingressar no mundo detetivesco. apesar de não contar com experiência, a verdade é que tenho vasto conhecimento sobre a literatura e dramaturgia da área, sobretudo autores como Christie e Conan Doyle e também peças midiáticas como CSI, Without a trace e Cold Case. além, é claro de ter desenvolvido a capacidade de compreensão da mente criminosa e perversa durante longos cinco anos de faculdade de psicologia.

- sou uma dubladora habilidosa. com ênfase em cabritos, ovelhas, gatos (filhotes, gatas no cio e felinos irascíveis) e fanhos. com este último grupo, já realizei trabalhos de intérprete e tradutora.

- sou uma razoável intérprete de purrtugueish de Purrtugal. com sotaque anasalado do Porto.

- tenho amplo domínio da arte da quirologia e quiromancia, de forma que há quase dez anos decifro mãos de amigos, desconhecidos em aeroportos e também namorados, em momentos etílicos ou descontraídos.

- jogo tarô e cartas de baralho há quase doze anos. interpreto mapas astrais e tenho conhecimentos rudimentares de sinastria amorosa. atenção: NÃO trago pessoa amada em três dias.

- a dança exótica e burlesca não está fora de cogitação, pois tenho dois anos de dança do ventre e na adolescência ainda, fui iniciada por uma sacerdotisa nas artes pompoarísticas.

- graças a uma estranha fascinação pela Romênia [por algum misterioso motivo que ainda desconheço], adquiri um extenso conhecimento sobre a vida de sua família real. ênfase na vida das princesas Jleana e Vitória Melita.

- e para terminar, corôo esta lista com a minha mais recente descoberta. um novo e interessante nicho de práticas artísticas. me refiro à declamação de poemas em enfermarias psiquiátricas. extremamente rentável, diga-se de passagem.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

...

migrando para a superfície das coisas



eu busco o tom exato,
o timbre preciso




que me faça vibrar

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A boa dormida

Encapsulada

na couraça quase impenetrável
da minha pele,
em lenta,
lentíssima voragem,

rolo colinas de lençóis amarelos de algodão.



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Da minha janela cerrada espreitam mil sons.



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Na horizontalidade oca de travesseiro, ouço tudo
ouço sobretudo aquilo que não vejo

cigarras obesas e morcegas grávidas silvam
e arpejam...
e cospem caroços de goiabas azedas
no entreabrir-se do meu portão.

Ouço o fervilhante murmúrio
de uma cerimônia oriental de casamento

com grilos da sorte
a celebrar

os bons augúrios
aos pinotes

esticando as bordas do momento.

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Entremeada
em microfibras,
em crisálida
de almofadas
e edredon

inspiro
e ouço o doce balbucio
das crianças da vizinhança

a ressonar em leves suspiros
de leite e baunilha,
toda a infantil pujança

dos sonhos preciosos
que precisarão de

mais de uma vida para recordar.

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E no instante de mergulhar,
no preciso momento
em que esgarço com um bocejo

o tecido benfazejo do sono,

ouço ainda

a pele
respirar

aliviada


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e algo meio que brota

do nada

em direção
ao sol da manhã

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sábado, 4 de setembro de 2010

Presente

para você



que insiste
em me convencer
que está
de partida



deixei
algo



no fundo falso
da sua mala desaparecida


despachei
dobrado em confins
de clara renda


e atado por
laços imaginários
de grossa seda


o beijo de despedida



ele vem com
sabor e cheiro,
e textura



e também um pouco
de tempero





sem esquecer



o guia
de sobrevivência
gravitacional




ele salta, portanto



em caso
de despressurização
ou de saudade letal





percebe?
eu o programei
para colar-se



à sua boca



e servir de bote,
de fôlego






se houver risco





ou





perigo de morte