Desencaixotando Rita

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terça-feira, 20 de julho de 2010

(dis)tensão pré-morte

Ela acordou com as bochechas coradas e a pele descansada. Músculos relaxados.
O frescor indizível de uma sentença de morte. Só os desenganados dormem desta maneira, ela refletiu. Uma piedosa concessão; último golpe de misericórdia do seu próprio corpo em colapso, talvez.
Levantou-se para o seu último dia de trabalho. Vestiu o vestido mais bonito, azul-escuro. Não tão curto. Pôs no rosto a maquiagem de sempre, leve, adequada para o escritório e esticou os dentes no sorriso mais atrevido de que era capaz. A empáfia derradeira dos que sabem que encontrarão a morte cruzando a esquina.
Despediu-se do marido, que também se aprontava para o trabalho. Com um beijo doce e mordaz, ela pensou em dizer: não a veria jamais.
Despediu-se sem dor, todavia. Não havia mais dor. Ainda a sorrir, ela considerou que contra todas as evidências, estava tornando-se uma atriz.
A caminho do ponto de ônibus, os passos firmes. Os saltos quadrados delinearam o seu último rastro neste mundo.
Com a mão direita suspensa no ar, ela interrompeu o gesto de sinal para o ônibus. E um momento de hesitação. O coração em gorgolejos descompassados de repente parou. O gole sôfrego de ar que ela engoliu ainda sorrindo não mentia. O fôlego final da sua vida.

sábado, 17 de julho de 2010

O caso da mangueira ardilosa*



Era uma vez um apartamento muito engraçado. Podia-se até fazer xixi, mas sob o risco de encontrar um lápis no vaso. Pois era isso. Havia um lápis itinerante na tubulação de nosso banheiro. Aparecia e desaparecia a seu belprazer.
Nunca soubemos o motivo de sua estadia errante em nossa casa. Tampouco como fôra parar lá.
Durante cerca de dois meses, um dos quartos abrigou um armário invisível. Demorou aproximadamente sete semanas para que ele pudesse finalmente se materializar. Foram semanas de intrincados rituais comandados pelo mago-montador Valdir e, depois de conjurar um sortilégio tijucano durante quase seis horas num sábado ensolarado de maio, o difícil armário, por fim, ergueu-se defronte à cama de molas e abriu suas portas.
Compreendemos naquele momento que alguns móveis precisam de um certo tempo. Não adianta apressar.
o apartamento tinha teto e paredes, sim, de fato tinha; sofá também tinha e até mesa, o que não tinha era fogão.
Quer dizer, até tinha. Mas veja bem, era um fogão de fachada. Alguns eletrodomésticos são assim, uma farsa. Era o caso.
A verdade era que o fogão de nossa casa era nada menos que um apoio para o filtro de água e não, nem me fale de água. Digo nossa casa, porque éramos três as habitantes dessa estranha casa: eu, a mulher de terra; Mar, a mulher de água e a panterinha albina-de-olhos-azuis-celestes, também de água.
Notem que água predomina. E não sem efeito, como viríamos a descobrir, pois a água era o elemento dominante daquele apartamento. Estávamos todas submetidas, sem saber, a uma poderosa entidade doméstica - uma entidade de natureza líquida - encarnada pelo que parecia ser uma inofensiva mangueira. Especificamente a mangueira da máquina de lavar.
O fato é que alguns meses se passaram antes que a verdade viesse à tona. Foi preciso que a casa inundasse três vezes para que enfim desconfiássemos da astúcia daquela mangueira.
Explico.
Em três diferentes ocasiões, o mero pretexto de lavar a nossa roupa serviu aos malignos desígnios desta mangueira. De alguma maneira que ignoramos, ela conseguiu desvencilhar-se do tanque e alagar não apenas a área, como também a cozinha, o corredor, uma parte da sala e do quarto pequenino. Isso em diminutos intervalos de tempo, menores talvez que um quarto de hora.
O único comôdo que permaneceu incólume aos avanços da Água foi o meu quarto - o único quarto-terra da casa.
Meses depois, reconhecemos que demoramos um tanto a desmascarar a ardilosa mangueira. Contudo, feito isso, iniciamos um processo de telurização da casa, para torná-la habitável de novo.

Ainda não sabemos o que virá disso, mas estamos todas grandemente esperançosas de viver em uma casa menos pantanosa.

*todos os fatos relatados acima são verídicos.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Retrato da dona do blog quando [quase] jovem




Cada vez mais porosa e intercambiável.
E de fato, reproduzo em mimese inexorável o mesmo movimento de fuga. O mesmíssimo.
A fuga em asterisco, o chuvisco clandestino (em mim tem chovido o dia inteiro, sabia?) e desintegração dos limites já rarefeitos. A falência do meu próprio destino.
A mesma menina corada fugindo dos palcos. Fugindo de quem? Os holofotes e spots não refletem o que têm de refletir, eu garanto. Um engodo, isso sim.
Eu? Não reflito. Sou impetuosa e impulsiva, omito.
Esponjosa que sou, absorvo tudo.
E cuspo. Não engulo.

Definitivamente não engulo.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poison Ivies

Todas as mulheres da minha família têm um aguilhão de escorpião em algum lugar recôndito de seus discursos.

Me pergunto aonde estaria o meu.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Aprendizado do fogo

A moça ao lado hoje acordou um pouco piromaníaca.
Com vontade de passear por aí com um rastro de pólvora atrás de si,
borrifando lufadas de gasolina pelas ruas.

Faiscante,

em curto-circuito.
A deitar pelo chão pequeninas centelhas elétricas que,
como chuviscos de final de tarde,

mal deixam vestígios aonde caem.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A única língua que não falo

Em plenos 25 anos e 1/2, constato que falo com mais ou menos fluência pelo menos três línguas. E mais 1/5 de língua não-fluente, talvez.
Vejamos.
Tem a língua da minha mãe - o português ora cálido, ora afiado, que ela me ensinou bem.
Em seguida vem o inglês cantado do meu pai. Inglês com a entonação galopante dos cavalos do Kentucky, alternado com o português tão arrebitado de Recife que ele fala e que me divertiu imensamente desde que eu me lembro.
Aí tem, é claro, a língua do sarcasmo, que minha mãe jura que aprendi antes mesmo de me pôr a engatinhar.

E o francês, que me é 4/5 (ou mais até) completo desconhecido. Mas que exerce uma certa atração, eu admito.
Acho curiosa a redondeza maleável, às vezes pastosa dessa língua. Uma circularidade enganosa, que faz pausas bruscas, ásperas, arranhando a garganta e surpreendendo os que confiam na suposta beleza inofensiva dos seus fonemas anasalados.

Contudo, armada com todas as ferramentas lingüísticas disponíveis, nesses vinte cinco anos e 1/2, constato algo aterrador.

Não entendo uma palavra que você diz.