Desencaixotando Rita

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terça-feira, 15 de novembro de 2016

"primavera autocrata politeísta apocalíptica"

deixem a primavera para bandini
e para keats com seus pulmões em colapso
os girassóis para van gogh
e pelo amor dos deuses, se falarem de andorinhas
que elas sejam radioativas
         e não melancólicas

porque aqui não aceitamos mais andorinhas
e nem albatrozes brancos
                  anacrônicos
apenas os sanguinários

homicidas.



aqui nos movemos
            na sombra

e cultuamos
tudo aquilo que é
suavemente
   ~gótico~
[e portanto
deslocado
nos trópicos]

então desliguem
         esse verão

antes que os olhos
          se apaguem
                               
                   
                                     


"um casamento romeno"



quando penso em você
eu me lembro
do som ininterrupto
de patas e correntes
resvalando sobre
a terra batida
do encantador
de ursos 
empoleirado
com seu acordeão
longínquo se afastando
do vilarejo
para retornar no verão 
seguinte com o mesmo urso
sempre o mesmo urso
a mesma intenção oculta
a fome do bicho
a dança notável do bicho
impressionante
o mesmo urso



me lembro de quando
anoitecia
e a avó  ladrava
para eu sair logo da rua
e voltar 
para perto 
do       fogo
pois aquela era
                  a hora 
dos morcegos
dos mosquitos
das criaturinhas aladas
que voam suicidas
em direção à luz


eu me lembro claramente
do dia do nosso casamento
os sinos dobrando em dois
eu me dobrando em duas
de dor        de desterro
o som dos pratos quebrados
as moedas voando sobre nós dois
os votos de boa fortuna
dos anciões
                em vão

our big fat romanian wedding
um matrimônio italiano à leste
                                        de bucareste

nem a teoria do multiverso
explicaria nossa presença nesta 
tragicomédia a la kusturica

mas escrever sobre o amor
é como fundar um país íntimo
deslocado                   à parte 
de um domínio continental
                            operante



escrever sobre o amor
é como violentar um poema
no seu cerne
de crisálida
quase sem pele
ainda sem asas

e partir sem nada
                   mais a leste 
                         do que antes

porque escrever sobre você
me faz lembrar de coisas 
que eu não deveria lembrar
               escrever sobre você
        é sempre esse problema:
o choque de metalinguagens
                o urso, as patas,
o roteiro cinematográfico
desandado, o fogo, o sangue
                                  as asas.


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

"sobre o incidente de emagrecer 5kg e se tornar uma serpente mítica grega por alguns dias"



     escrevo este poema
neste estado de cetose
                          química
que nada mais é do que
o termo médico
para quando o corpo
resolve devorar a si próprio
          [como a serpente ouroboros
              que engole a própria cauda
                          infinitamente non stop]
depois de um período de privação
de carboidratos
             simples
ou complexos
[ou depressão anoréxica]
     ou simplesmente
um jejum prolongado

                                    aqui
entre estas doze paredes
e suas incontáveis quinas
arestas ângulos agudos
             o b t u s o s
[eu contei todos esses dias]
não há amor
não há sombra
nem carboidratos
é a porra da terra devastada
do eliot

só há esta luz que penetra
tornando tudo nítido demais
as cores primárias demais
essa saturação insuportável


    onde estão os fifty shades de
qualquer maldita cor que seja?
          quem diria que a sutileza
                                       se perdia
      junto com os carboidratos?


'um nevoeiro mental' o médico disse
'é um dos sintomas 
você vai ver'
significa que está funcionando
           e em breve
esse peso também irá embora
                                      [mas não]

eu vejo mesmo todos os contornos
não há nada difuso aqui
nem nevoeiro nem sombra
eu vejo todos os contornos
                excessivamente
quero rasurá-los

    mas        eles se recompõem
quando eu não estou olhando


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

"devagar"




troco o hímen
por um homem
como quem troca
um fonema
            por outro

            a pele
            por outra

flor

escrita nas imediações
                 das catástrofes naturais


"paisagem com mulher ao fundo"

não ouso mesmo te revelar 
do desejo insincero de ser outra:
pele e vísceras singradas, 
                   sopro, soluço
                   - uma outra.
não sei mais o que esperar 
                 do risco
e eu queria mesmo voltar a ser aquela
que sabe usar o silêncio como uma adaga
de cinco pontas e 22 cartas de baralho --
a mesma que você embebedou tantas e tantas vezes
com o consentimento das pessoas perigosamente enamoradas,
de pernas cruzadas, unhas precocemente descascadas,
cabelos em desalinho, bochechas rosadas,
                           essa outra.


porque, percebe, em torno de mim tudo sempre gritou 'provinciano' 
em neon, piscando, mesmo que eu soubesse ser elegante
como uma concumbina chinesa com ascendente em imperatriz-to-be
embora eu ainda saiba usar de sofisticação a meu favor como se usa
uma nuvem de perfume caro com a naturalidade letal
que neutraliza os sapatos gastos comprados a prazo

mas não esconde uma vergonha íntima tão antiga
que já não se encontra nem a matriz
                              e tampouco o fim

e o que você chama de paisagem, meu amor
                 eu chamo mesmo de uma bela cicatri

              causada por outros e inúmeros impactos.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

"a morte de katherine mansfield"




                                       ana c. está farta:
da materialidade embrullhada do signo
da metalinguagem narcísica dos poetas
                do texto de espelho em punho
              revirando os óculos modernos

[ana, quero também 
                   a página
apinhada de abajures
a legião antidiluviana
invadindo
pelas margens
               mas sem
ocupar efetivamente
                 o coração
                   do texto]

mas ana c. deseja
         sobretudo
esse enamoramento
                     letal
                       por
                  abismos
                anacrônicos

e seu erro planejado de cálculo:
   ancoragem   ancorar ancorar
  ancorar um navio no meio-fio 
[o navio encalacrado no espaço]

          **************** 

ou uma sequência interrupta
          de naufrágios?

mas há que se considerar
      a pausa perigosa
          nos pulmões

a pausa perigosa nos pulmões
         de katherine m.

como é possível, ana
     traduzir bliss
se o estado de graça
há de desembocar 
                  sempre 
                         numa pausa?

tu trocas 
a  beleza desmedida
                  da 33a poética
                  [o desejo secreto
                             do poema]
                  pela  serenidade
                  de quartzo
                   como têm
        as saudáveis mulheres campestres
     de mansfield com seus rostos lunares
              seus braços fortes
            o busto substancial
seus rebanhos de ovelha
[as mulheres de mansfield
   prontas para a colheita]

as mulheres de mansfield

         e a pausa perigosa 
              nos pulmões




quarta-feira, 14 de setembro de 2016

''garota acidentalmente de vermelho"

eu tenho há dias uma garota
   encalacrada
                nas retinas:


                                       uma garota 
acidentalmente vestida de vermelho
          da cabeça aos pés
 um rastilho quase invisível 
                de pólvora
decantando a cada um 
de seus passos andaluzos

      ela é  a minha garota 
verdadeiramente plutônica
ela tem mais daddy issues do que eu 
suas cartas de tarot 
são lançadas displicentemente
no fundo da bolsa,
 junto com sua necessaire 
        de maquiagem
e as chaves de casa
      e os planos 
de uma vida longa
                          e feliz 
na medida do possível
- porque feliz feliz ninguém é
não o tempo todo
não como um todo
não por tudo

e sobretudo: não porque 

a garota está acidentamente vestida
                  de vermelho sangue
ela tem ~acidentalmente~ no peito
                        um alvo
           a prova de setas e tiros
                                       mas a garota 
a garota está propensa a acidentes
                                        - disseram - 
            "acidentes"de natureza obscura 
                como em romances policiais
      ou programas de mistério na tv a cabo

a garota está acidentalmente vestida de vermelho
   ela tem 28 anos e um laudo de necrópsia 
                          para decifrar
nem a esfinge da medicina forense 
ou nenhum oráculo se atreveu a antecipar
                        sua morte

eu tenho uma garota
a c i d e n t a l m e n t e
      presa às retinas
ela está vestida de vermelho
e isso não é um poema
isso não é uma notícia de jornal
é uma elegia:
a garota veste vermelho

e isso não é um acidente.

"missão dama de copas"

      esse, meu bem, é sobre o acaso
                que nos pôs aqui 
        nesse claro concubinato
vendo carnificinas onde não existem
crescendo tempestades domésticas
                   de estimação
           em aquários calefados
a verdade é que acredito na cigana 
nas linhas das suas das minhas mãos
e nos gêmeos profetizados -- eu & você
                o garoto dos cascos
sonhei esta noite que éramos um casal
em pelo menos dois universos paralelos
[o que claramente denota um destino]
                            ........
                   [o que denota 
                       que o giz 
              riscado no quadro
              era mesmo um pacto 
             de muito muito antes]
                    mas o fato 
   é que eu tenho uma coisa com gatos
           é que tenho um nome secreto
                que você desconhece
           uma tremenda tolice - é claro, 
                 ~um nome de dança~
            que recebi aos dezessete anos
               quando eu fui odalisca 
de beira de estrada
numa cidade litorânea 
do interior do estado





e o mistério que fica mesmo
é como pode uma cidade 
ter essa existência dupla:
ser litorânea
              e ser interior

no seu estado

sábado, 13 de agosto de 2016

"uma mulher sob influência"












queria escrever um poema sensorial, um sobrevoo rasante, ébrio, erótico,
com palavras que pudessem salvar algo disto aqui, mas o poema ele fracassa.
o poema fracassa justo onde eu preciso ser salva, justo onde eu, como gena, 
mabel, como outras, como todas as mulheres que levantam os braços e rodopiam
com ou sem roupa, pelas ruas ou entre paredes, em silêncio ou aos berros,
            justo onde enlouqueço numa sazonalidade que não omito

                                                                                         mas não controlo.

queria escrever um poema que colasse no corpo como um drink açucarado que seca
sobre as pernas no dia seguinte após ter sido derramado numa noitada sem que fosse
sequer percebido. mas o poema fracassa porque esta loucura 
porque esta loucura tem o formato de dunas que se movem 
lentíssimamente durante a noite, rearranjando uma nova paisagem estática 
ainda que movente a cada dia.
                            
                                      o poema ele não se curva
                            ele é tão domesticável quanto uma onça 
                                     fumando charutos cubanos.

mas se você superar isto e seguir adiante, o poema te oferece uma delicadeza selvagem
como a de um gato que brinca monotonamente com um balão de gás já meio murcho,
rolando-o pelo chão com as patas e unhas, mordiscando de leve,           sem o destruir.

      queria mesmo que o poema tivesse uma qualidade profética, 
                     que inaugurasse um universo paralelo
           mas o poema é bidimensional; ele tem a velocidade
          de gotas descendo espáduas octagenárias, incorrendo
               em cada vinco, hesitando nos profundos sulcos,

                             
                                           ensaiando um desvio
                                       a cada acidente epidérmico 
                                             causado pelos anos.



domingo, 29 de maio de 2016

"escrevo teu nome no grão"

por tudo o que tomba
sem se reerguer sem
sequer lembrar da queda
        pela sombra 
que nunca é proporcional
   à luz          
                 pela sombra 
que não é proporcional
de maneira alguma
                      à luz
te escrevo o nome
onde se escondem 
as montanhas
onde o sinal do celular
    n ã o           pega
nãopega nãopega n-ã-o pe-ga
escrevo ainda
com a tinta 
que extraio dos moluscos 
que aparecem mortos 
pela praia
no inicinho da manhã

pelo esquecimento compulsório
    da 
     q
     u
     e
     d
     a



"escrevo o teu nome 
   no grão de arroz"



porque saturno retorna 
        fora de hora
e a sombra não é proporcional
               ao facho de luz 
             que te acompanha
[e é um absurdo que a luz
produza tantos monstros 
com tamanha facilidade]
porque há sim pulsação nos vasos
         altamente periculosos
           das minhas pernas
e por tudo aquilo que tomba
                 sem levantar-se:
toma este grão luminoso
 onde te escrevo o nome
   devidamente instalada

             na virada invisível 
                                 do rio

terça-feira, 10 de maio de 2016

"nota sobre a manufatura doméstica de mitos autodestrutíveis"




na nossa pequena fábrica de ruínas
eu pedalo indoors 
porque não sei bem o que faço 
com tamanha liberdade
tenho um pouco de medo dos grandes espaços                     abertos
por isso os círculos
                   por isso 
eu puxo os  aparelhos ergométricos pelos guidões
um suave deslocamento sem [realmente] sair do lugar 
puxo a bicicleta pelo guidão riscando o chão da sala
como se segurasse 
um touro pelos chifres
~um minotauro ex machina
de uma mitologia recém-criada ~
e finjo assistir um seriado sentada 
ou termino um romance russo esfarelando
páginas amarelecidas 
        compreendo bem todas as suturas 
do mais célebre parricídio da literatura

por isso os círculos




                                           por isso 
as tentativas insalubres de figurinos extras
como se estivesse finalmente preparada
para ocupar o papel de protagonista

e esses furos acidentais
seguem perpetrados pelos dedos
ou pela máquina de costura?

por isso 
os capilares intradérmicos
perfurando invisíveis 
partes ainda por vir
        do meu corpo

e o aprendizado lentíssimo
da pecilotermia
 meus minidemônios meridianos 
brotando barbatanas brânquias
                           braços

enquanto fraturo 
ossos imaginários
para acolher 
em silêncio
    uma nova ordem

                   de feras 

                                                                        







 por isso
você sabe
 os círculos






quinta-feira, 24 de março de 2016

"manifesto dos coelhos na cornualha"

quando saímos à noite
eu: um coelho selvagem
     em cruzeiro atlântico
você: um surfista nativo
de uma cornualha rochosa
     em suma em suma
~ não há habitat natural
   possível para nosotros ~


            *********

                 e tenho me perguntado
                  a respeito da memória
que restou dessa luz infeccionada
a emitir padrões na pista de dança
como algoritmos infinitos
de perversidade estroboscópica
       -- pequenos eventos de led
a percorrer outros corpos absortos
       em   batidas   binárias
    e localizo no tempo enquanto
ensaiávamos alguns passos de dança
         essa microvilosidade luminosa
de um único ponto
             que insiste
em mirar o teu peito feito seta latejante
    [ homicida -- eu tenho certeza ]
                como quando
   um primeiro objeto perfurante
      acertou em cheio um alvo
                          e
                        viu
                     escorrer
                    um filete
                    crescente
                         de
                     sangue

eis que retornamos finalmente
                 ao largo fumegante
                              onde nunca
                          nunca mesmo
     caiu nenhum floco de neve

saiba portanto
que eu dedico
esta grave infâmia :
a todos os cômodos
que falham em caber
dentro de uma casa
a todos os móveis
uranianos i n d i s c i p l i n a d o s
que se rebelam diante
da geometria incansável
                                      de paredes
                                          criando arestas
    e ilhas de resistências
           no assoalho
formando ângulos indivisíveis
e  arcos    e  arcos        e arcos
          e ocupações inabitáveis
       dentro de todo e qualquer
     confortável seio doméstico

é preciso situar
o verdadeiro perigo
              justo onde
ele parece autorizado
a provocar pequenos
acidentes    por pouco
      imperceptíveis
desastres calculados
na parte hidráulica
             da cicatriz
para envelhecer  o  poema
   onde ele quase margeia
                    a membrana
                   do tímpano
e a impenetrabilidade
                  da pedra

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

"Blake"

   

 não há diabo de centelha
       que bruxuleie trêmula
      nesta pequena órbita
           de micropeixes

sombras ~
é o que temos
espalhado feito moluscos
                       que tingem 
sua rota de fuga ao permitir-se
uma escolha inexata 
                   de preto



              porque o meu amor 
tem a apreensão de um tigre
na antecipação do salto
        meu amor
é feito de naufrágio
[  entre peito aberto
e âncoras   excessivamente
                           precoces ]
 o que há de se fazer se tenho
  velas içadas nos pulmões
minivulcões eriçados nos dedos
como cavalos marinhos
                         sentidos 



 asas --- um destino
     de cada
                   vez




sábado, 2 de janeiro de 2016

"diário do ano da cabra"

{caro centauro}




decidi ignorar
solenemente
o som de seus 
           cascos


soterrar
essa mulher
de mistérios 
alagados
bárbaros

porque isso
NÃO É
um poema

porque o ano
da madeira
[suas lascas
goivas foices]
termina aqui

~lembre-se 
de que isto 
não é um poema~

                    é que
                   morrer 
d e v a g a r i n h o 
      exige fleuma

delicadeza suprema
 uma certa  finesse
  que não possuo


                      :    não é
                        fácil cair
             em     câmera     lenta




Imagem: "Centaur Kiss". George Leonnec (1924).