Desencaixotando Rita

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domingo, 16 de abril de 2017

"a casa dos pequenos animais"

para suzana pessoa

               




                     você insiste 
no clareamento forçado 
dos meus cabelos
aparentemente lera um artigo
sobre uma técnica de suavização
de traços a partir da falsificação
de molduras capilares
e de alegrias insuspeitas
às quais sabe que sou alérgica
         "é que o preto
       enche o teu rosto
           de sombras"
você decide ignorar que o preto
é na verdade uma pequena homenagem
                           que presto
               ao corvo invisível
              que segue pousado
                    no meu ombro
                há uns bons anos

                você pesquisa
       sobre as 30.000 espécies
              de escaravelhos
há horas você pesquisa sobre o egipto antigo
há dias você escuta a cacatua da vizinha
berrar como se estivesse assombrada
                    você jura ter sido
visitada por um escaravelho dourado
                       na noite anterior
mas tem dúvidas se o bicho era apenas
um besouro luminoso ou talvez uma barata 
                           geneticamente modificada
 o fato é que você não sabe o que fazer
e nós duas sabemos que isso é um perigo
você o isola dentro de um pote de ervilhas
esvaziado há tempos de seu conteúdo
                         mas segue acordada 
                                   a noite inteira
angustiada com seu escaravelho
preso dentro do pote vazio de ervilhas
               debatendo-se 
                 na cozinha
             o corpo arrendondado
 a emitir  uma luz sobrenatural
você sabe que é bem possível 
             que isso seja um sinal
 um indício ou uma distinção 
            uma nobreza inusitada
entre seus colegas artrópodes 
             menos aristocráticos
mas nada a convence verdadeiramente de que não se trata
de uma barata geneticamente modificada
                 você teme
      e retira o amor do poema
planeja uma corajosa operação de soltura
respira aliviada quando o bicho 
compreende exatamente o que tem de fazer
e quando você o deixa livre
                ele voa 
       voa com agilidade 
           para bem longe 
     sem olhar para trás

você se sente finalmente livre
para voltar a pensar nos cupins
    que roem a estrutura da casa
 do sofá e das portas e armários
a gata presta atenção aos ruídos
inaudíveis aos ouvidos humanos
os ruídos 
              de uma lenta demolição

você estremece e devolve o amor
                      de novo    ao poema
sente agora uma certa liberdade para pensar
nas pequenas feras
no amor
na casa 
na madeira nas paredes
nos ruídos inaudíveis
                         a todos
                   os ouvidos
        salvo os da gata
cuja atenção se volta
para um murmúrio em particular
                          fora do seu alcance





sábado, 1 de abril de 2017

"o método doppelgänger"

neste dia há de descobrir 
que dentro do teu tórax
habita uma granada fossilizada
com meu nome gravado

a letra que te fez fêmea 
      mistério veneno
e me privou de teu estatuto de bípede
    para inaugurar uma ordem secreta
      de concubinato
de circe sereia convite aberto
           para colisões contatos


para denunciar enfim em ti
           uma voz
capaz de hastear mortos
como bandeiras em riste
para desvendar o gesto feroz 
     o giro carpado
geometria incansável
da foda
do limite
das cordas

e ainda assim ser capaz de
arrancar furiosa o encanamento
          da tua planta hidráulica 
[tua superestimada liberdade]
            ter na ponta da língua
uma sentença óssea capaz de perfurar a membrana
                             sustar a anestesia
revelar tua rota fundamental de fuga

      sustentar aquilo que rui
           mas faz costa
a parte de ti que é pavimento
       e se curva em istmo
sintomática em seu mecanismo 
      de defesa contra a água


na convicção daquilo que se tinge
  e ainda assim permanece seco

no que insiste na afirmação
                  de propriedade 
                      do poema
               "esse poema é meu"
mas eu sigo mesmo vagarosa
            [na dúvida]
sigo na possibilidade de que 
este poema não seja meu

                  que animal é este?