Desencaixotando Rita

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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Veias azuis

Elas mal aparecem, Elisa - disse a mãe com enfado na sala de espera.

São a princípio reticulares, mas ainda não estão propriamente doentes... É a tez clara da sua pele que permite que o esverdeado seja visto a olho nu.
Olhe aqui - a médica apontou um caminho curvilíneo, quase invisível na parte traseira da coxa leitosa de Elisa e prosseguiu pacientemente- elas têm um grande potencial para se reintegrar à circulação do corpo. Não seria bom retirá-las neste momento. O procedimento pode prejudicar ainda mais a circulação.
Você não devia se preocupar com elas nos próximos 6, 7 anos - recomendou.
Mas diante do desolamento da menina de dezoito anos que tinha diante de si, a doutora ainda sugeriu algumas aplicações leves, só para prevenir microvasos em algumas regiões.

Elisa recusou e se levantou lentamente da maca aonde fora examinada, olhos baixos e ombros curvados.
Vestiu a meia para varizes sugerida pela tia avó - a contragosto da mãe, que falhara assim como a médica, em identificar qualquer vaso de cor suspeita em todo o aparelho locomotor inferior da filha - e partiu para casa com a mãe.
Mal não faz, Liana - assegurou a tia na época. Ninguém nunca foi preso por prevenir este tipo de coisa. Deixa a menina se cuidar! Ela não é nada como você, que nem as pernas depilava nessa idade!

Elisa não era como a mãe. Embora a semelhança fosse alardeada pela família e por aqueles de fora, Elisa não a reconhecia.
Talvez não fossem os traços redondos, bem feitos da mãe, a sua compleição clara e carnuda que garantia uma beleza notável para além da idade ostentada que Elisa rejeitasse.
Ela reconhecia que a aparência de musa renascentista (como bem dissera um rapaz de sua faculdade), com os longos cabelos anelados e escuros, a carnação macia e branca, todos eram uma herança genética de Liana, sua mãe.

Mas não se tratava disso.
A recusa não era da semelhança, veja bem. Elisa tinha dificuldade mais primitiva, uma dificuldade de apropriação. Apropriação do próprio corpo.
Sempre uma estranheza, algo invasivo e súbito.
Algo sempre a espreita. Algo que parecia fugir ao controle. Fosse uma pinta que numa bela manhã parecia ter migrado do antebraço para o pulso, fosse uma simples dor de estômago na páscoa.
Há alguns anos fora examinada por uma série de especialistas pois se queixava de que, por maior que fosse a dor sentida, não havia lágrimas disponíveis. Os olhos estavam demasiado secos, ela dizia.
Eliminadas quaisquer anomalias nos dutos lacrimais, constatou-se, por fim, uma leve disfunção na tireóide.
Elisa chorou de satisfação quando esta suspeita foi confirmada.

E agora as veias. Azuis, azuis, ela via.
Elisa sabia que já carregava uma grande bacia hidrográfica, que descia das diminutas nádegas aos calcanhares.
Era uma questão de dias. Um dia após o outro e lentamente apareceriam. Elas estariam lá, centenas de veias azuladas, verde-jade, escorrendo sem sangue pelas suas pernas.

Compreendia a médica. Não havia nada que ela pudesse fazer, sem dúvida.
Mas não podia esperar que as veias morressem diante de seus olhos, podia?
Sempre se considerou prevenida, compreendia a fundo as intrincadas relações entre causa e conseqüência.
Não seria surpreendida por um mapa fluviário que insistia em se imprimir em suas pernas. Daqui a cinco, seis anos? Não importava os anos.

O plano era bem simples. Elisa acreditava a simplicidade sempre incrementava as chances de sucesso de qualquer empreendimento.
Estudaria por alguns meses anatomia e fisiologia. A solução seria remover todas as veias que oferecessem qualquer risco de emergir na superfície quase translúcida da sua pele.
O primeiro desafio era memorizar quais eram as veias e quais eram as artérias - estas sim, auto-suficientes e pulsantes.
Ademais, foi fácil.
Recortou um grande pedaço de lona para forrar o chão do quarto, esterilizou seus objetos cirúrgicos: algumas lâminas de barbear do pai guardadas no armário do banheiro; uma pinça de sobrancelha para içar as veias inúteis; agulhas e linhas para costurar a pele no caso da incisão ser mais funda do que o planejado.
Levou até uma garrafa de uísque do pai, para tolerar a dor, se preciso. Mas duvidou que fosse necessário.
Ainda não havia procurado um médico por esta razão, mas a verdade é que se sentia mais e mais anestesiada a cada dia.

O álcool não apenas foi desnecessário, mas não é exagero insinuar que todo o procedimento pareceu encher Elisa de prazer.
Não havia dúvidas, ela demonstrava saber exatamente o que estava fazendo.
As meias circulatórias tiveram também a sua função. Cobriram os roxos e os cortes cobertos de linhas negras bordadas em ponto-cruz - a única prenda que lhe ensinou a avó Josélia antes de morrer três anos antes.
O processo de cicatrização foi assim escondido dos olhos alheios pelas meias sim, mas não a placidez de espírito que envolveu Elisa nos meses que se seguiram.
Estava menos curvada e cabisbaixa, mais corada e viçosa, seu corpo não dava sequer notícias do sangue que perdera naquela tarde. Todos concordaram que ela parecia bem e menos obcecada consigo mesma.

Difícil confirmar se a extração das veias comprou de fat0 um longo período de suavidade e paz para a moça ou, se apenas se constituiu como a primeira das "correções", tal como a própria Elisa se referia a elas.

Naquele mesmo ano viajaram todos à praia no verão. As cicatrizes não foram um problema, posto que Elisa fora meticulosa e asseada nos cuidados.
Eram praticamente imperceptíveis.
Passeando com a mãe e a irmã pela cidadezinha litorânea num final de tarde do final de dezembro, pararam numa lojinha que vendia biquinis e cangas, além de outras bugigangas afins.
Ao se mirar no espelho, experimentando um biquini azul, Elisa foi surpreendida. Apalpou a lateral das costas com angústia. Sentiu algo, algo que excedia o seu rígido contrato corporal.

Havia uma costela a mais no seu peito esquerdo.