Desencaixotando Rita

Desencaixotando Rita
Powered By Blogger

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

"my very own l'albatros"


essas asas de gigante
impedem-no de andar
                      na terra
[baude diria
a seu respeito]

uma pequena revolução
feita em curvas
      e lascas pontiagudas
                    [a parte do fogo
                     que o constitui
                    cobra seu preço]

os que vivem na água
não compreendem a tua
fundamental instância
                do voo
       e pouso

o nosso céu da boca
                   em festa una
                            de dois

             porque
há algo em você
que não se esgota
[     que demanda
________________
/ incorre / me ganha
  na exigência atroz
                de brilho,
          fagulha súbita
                tímida     ]

                mesmo
          na    hesitação
-  e    você,   meu    bem,
 é criatura exímia na graça
      de   s e r      titubeante,
        nesse bruxuleio de chama
                  envergonhadíssima

                    de sua  própria luz

porque mesmo as pedras
                 luzem à noite,
     guardam
    calor em seus núcleos
            para uma dança sísmica
     que escapa aos nossos olhos

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

"a paixão segundo r.p."

mordo e observo partes duras
movendo-se na oscilação entre
luminosidade e desaparecimento.
mordo,
em busca de algo que reflita luz, sem
pontos de interferência, sem
sobreposição de planos sensoriais,
essa sinestesia opressiva que anuncia
que toda alegria é temporária. 
ando mordendo a ponta dos dedos,
mordendo as páginas estrategicamente
abertas
e a essas alturas do quase verão 
do rio de janeiro,
eu preciso de neve como quem precisa
acordar de um sonho excessivo,
lindo sim, mas
com a beleza descomunal
dos colapsos e vulcões despertos.
tenho sentido uma compressão lenta
da alma, como se estivesse me tornando
uma pessoa pequena aos poucos, diminuindo
milímetro por milímetro, ainda assim 
mantendo as proporções,
como uma anã liliputiana de Rosa Montero,
aguardando o eventual desaparecimento.
"é um engano", é o que você diria, 
e eu ainda estou esperando,
estou esperando que você me diga
"sim, você está enganada", mas eu não estou.
sim, pequenas surpresas ardem na virada do dia,
mas não estou enganada quanto a isso:
hei de inventar um outro nome para isso que morre
na virada do dia e renasce bicho difuso, ainda sem 
penugem, sem consciência 
da metamorfose que guarda em si.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

galápagos



há que existir um pacto telúrico:
               uma existência de trópico
exige essa consistência turva de 
                                        sulco.

o processo é doloroso
para aqueles que um dia
viveram
na água

           então, 
esse vermelho
tinge o mar todo
em coágulos 
         águas-vivas 
sanguinárias dançam
rascantes pela praia
          à noite
o seu relevo ulcerado
[a mesma superfície das
         estrelas marinhas]
retine a velha sereia 
em sua habitação
                 sem som

mas eu
eu não sobrevivo na água,

sou atravessada
por um baque luminoso
de holofote e dor.
perfuro a rocha 
e me livro das anêmonas
                         salgadas
feridas em fúria, 
em movimentos circulares,
            concêntricos.
atinjo a antecedência da terra,
                      mas permaneço
em estado de ilha, como em meditação 
forçada, como réptil que abdicou da
                          habilidade aquática,
em desajuste sólido, seco.
uma desadaptação equivocada,
esse desterro primeiro
que precede 
a espécie 
               e o reino.

sábado, 22 de novembro de 2014

"síndrome de estocolmo"

[        isso é o ensaio de algo?       ]
, você me pergunta na porta
            do quarto -  os hiatos
em meu discurso abertos à tua
observação, ao teu toque ruidoso.
       centro     e margem dispostos,
como num jogo de tabuleiro
e eu peço um   tempo    para responder,
pois não sou boa com cenas, com cri-
anças ou fogões, você sabe e sorri teu
sorriso netuniano. eu meio que desvio
o olhar e busco, nas paredes de cal,
por um orifício, um traço que      turve
        o teu corpo solarizado, bruto,
logo você me pergunta, irisado
de repente:
[     mas isso,   isso   tem nome?        ]
                 não, eu digo.
volto-me para a cama, desolada, pois
estes lençóis freáticos de crisálida
       em desalinho, desaguam
       no mar
       e não retornam jamais.

                             e esse é o ponto angular
da tua célula terrorista, amor,
cá estamos a lutar pela terrível liberdade
de bater os dentes , tremer de fome,
sede,   amor,                         hipnotizados
[   e  agora,    ainda   é    um    ensaio?    ]
                 pela oportunidade
de morrer,  amor,   
de morrer de medo.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

"enquanto você esteve fora, meditando em retiro pelas montanhas"

eu, que segundo a psicologia analítica de Jung,
seria um caramujo introvertido, labiríntico
e temperamental, experimentei golpes de
ternura maciça e dormi irrequieta, na cama
demasiadamente grande, com tua camisa
do Velvet Underground,  a banana de Andy
Warhol manchada de sangue e não chorei
nenhuma vez, nem uma vez, você me conhece.
enquanto você esteve fora por quase cinco
dias inteiros nas montanhas, para meditar
e cozinhar vegetais-mas-não-raízes, pois
são proibidas, eu dancei, escondida pelas quinas
dos móveis a espanar, refazendo teus passos-
fantasmas pela casa, pensei na tua costela quebrada,
e costurei todos os botões arrancados pelos teus
dentes afiados, com agulha e linha de verdade,
como uma boa mulher, como uma mulher de verdade.
você esteve fora por quase cinco dias inteiros e eu refiz
mentalmente o percurso ardiloso do acaso que nos pôs
juntos aqui nesta casa de dois cômodos e louça discordante;
fiz algumas compras imaginárias de vinhos e espumantes
para celebrar um destino e tive um pequeno contratempo
que logo se mostrou digno da minha atenção. a verdade é que
explodiu o disjuntor monofásico do apartamento e temos aquilo
que parece ser uma bela clivagem por aqui. metade da casa acende,
obediente - a minha metade -, mas a outra metade rebelou-se
contra a sua ausência, parece, e recusa, recusa ameaçadoramente,
com faíscas ostensivas e risco de curto-circuito, a luz.
metade da casa recusa a luz como numa encenação, a mímesis
de um negativo da sua presença, como um luto prolongado, ressentido,
pelo favorito que parte, o habitante de fogo que dorme aqui, mas não está
presente. enquanto você esteve fora, meu querido, a meditar nas montanhas,
eu assisti serenamente a transfiguração da sua metáfora ígnea em realidade, e
esvaziei a geladeira de todos os seus itens, esperando pelo inevitável degelo.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"a luz me atravessa pelos ouvidos"

somos seres
descontínuos
feitos de pó
       [ sal ]
palavra inquieta
no céu
          da boca


o        pouso
    sereno
na língua

      é asa

lambida
        de vento
[interditada]
         à boca
da ponta de
teus dedos

nossos pés
ascendem
                   alto
cristais 
de gelo
em êxtase
       ártico.

          ursos polares
tocam oboés
e címbalos
        em teu nome
        em tua homenagem,
porque você é um irmão
                       canino, lobo arauto

          porque                   
essa segunda pele
           logo eclodirá

   da cicatriz

e meus tímpanos
       já vibram:

ouço
     o mar chegar

            finalmente 
            aqui

Sendo Greta Gerwig

por uma estética desesperada do fragmento.


Não tenho certeza, mas acho que estou ouvindo um assovio submarino desde que acordei. Aparentemente uma baleia beluga achou por bem dissolver-se no meu fígado; é bem verdade que certos patês oleosos e cantos marinhos só desaparecem assim, esquadrinhando meus lobos hepáticos, e em alguma dimensão paralela, num universo desconjuntado onde sou alguém qualquer, alguém diferente disso aqui, tenho sonhado que observo como uma voyeur várias sessões de sexo selvagem entre delfins mediterrâneos.
Não fazer parte. Não fazer parte de nada e se desconectar com a facilidade de um fio. Essa ladainha familiar de Greta Gerwig tem se feito ouvir. Não fazer parte de nada. Achar que é possível, mas não ser. 
Não ser possível é uma única possibilidade em que pude ser incluída até agora.

Acordei horrorizada com a impressão gelada de que eu poderia ser Greta Gerwig, com os dentes de foca insubordinada, adoráveis dentes alinhados, mas de uma linhagem pura, essa arcada dentária das focas da Groelândia, que trazem a missão de insurgir contra a opressão que as obriga a migrar todo verão.
E se eu for Greta Gerwig, existe a chance de que eu seja Lola Versus ou Florence Márr. Ou pior, Frances Ha. E isso é insustentável. É um feminino terrível, pestilento; ser Greta Gerwig é, em certos sentidos, pior do ser Medeia, Medusa. Não há útero primevo, não há mistério sendo Greta Gerwig. Há a linda descoberta desoladora de que não é possível ser diferente do que se é.

Há a turba obscura, o labirinto do minotauro que só leva ao centro e o centro, Frances, é você.

Há a fase terracota, as cores quentes, os personagens criados e perdidos antes de chegarem à frágil existência de papel, mas não há esperança de um nascimento da vênus. O sol nasce para todos, mas vênus não nasce para Greta Gerwig. Até existe um certo lirismo, eu posso dizer: ácido, pós-moderno, um lirismo de sereia blooming, bêbada e existencial, com múltiplos vestidos de coquetel e nenhum dinheiro no banco, nenhum prodígio oculto. 

Me pergunto se há uma desistência em ativamento, o fim de Rita: o sexo nas entrelinhas.

A promessa de uma maior proteção contra as bactérias e dias mais verídicos, com feixes obscuros, mas precisos. Saturno completa mais uma volta perfeita ao redor do sol e tudo permanece exatamente como deveria ser.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Litania


é de suma importância que
                    não sucumbam
os peixes          defeituosos
e aves
       mesozoicas
que habitam as
casas               geminadas,
justapostas como conchas
neste seu condomínio ístmico
[uma serenidade vegetal
                       pressupõe
dentre outros, esses pequenos
                       cuidados]
                   

parece, meu querido, que tudo neste universo inteiro
            de         ilhas                e          vulcões              adormecidos

depende da minha existência precária
em sua célula terrorista

     ao meu epicentro
transmigram
suas cachalotes e leões marinhos
em exílio:
                uma festa por vir.

essa calma bovina
pesa paralisando meus
músculos faciais - e
espero
[com a convicção
a partir da qual
crescem os ossos]
que a pausa
estique-se
naquela
suspensão poderosa
que
precede        toda
         revolução



domingo, 12 de outubro de 2014

"fauno"


cultivamos ciclones
sazonais como
veleidades que pendem
da boca, as mancuspias
de cortázar:
um compósito bestial
perfeito.
nenhuma translação
escapa
à nossa disco-voragem
[lampedusa]
                        de ilha.


um ouriço albino desloca-se
lentamente
através dos meus dedos
transparentes;
                              [ há ]
um animal sagrado
sentado em lótus
que nasce do rastro-uivo
de teus cascos,
um centauro,
atravessa o peito
num salto
[flecha & alvo]
em casamento trágico
e perfeito.

porque você invoca em mim
a paixão mítica,      
ancestralidade da        carne,
que é a gênese cosmogônica
do universo               inteiro,
me desvela arquipélagos urbanos
entre prédios, ruas, entre seixos.
tenho a pele infectada de ti,
doença desconhecida que me
tangencia:
uma cicatriz desenhada
com os dedos.

[você],
você integra
my very own bestiário
contemporâneo
e me ensina pacientemente
duas ou três coisas

                 sobre a pele das ostras
e a minha própria morte.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Jacques & Alix Cleo



qualquer coisa de preto
me acorda à noite
como 
a musculatura 
pesada
que cresce
na umidade
oleosa do poema
expandindo 
               interstícios;
paredes cobertas de fungos
colam-se 
                à minha pele franzida.



tenho miríades de caixas
                               no chão 
objetos lacrados
embalados 
na sua ausência
[achados e perdidos
que não se toleram 
                   entre si] 

há um desejo      de      pura taxidermia
                  decantado no fundo 
                  do copo
- rebarbas  
de uma       vivissecção emocional:
suturas                               disfóricas
               inextrincáveis.

qualquer coisa de preto
emite  pruridos no golfo
sulfúrico da palavra secreta
engolida com os comprimidos
                              para dormir. 

mas é preciso que 
o céu esteja
impermeável a isso.
não há piedade
na anomia
na certeza
nos corpos
que          emitem          luz
é preciso que o quarto 
permaneça vedado
a tudo que dança, que espirala
em ascensão desabalada e 
se reproduz.




terça-feira, 9 de setembro de 2014

"ex-vênus"

para leonardo

este é todo teu, garotinho,
o habitante litúrgico, lisérgico 
do meu sonho-arquipélago.
juntos, povoamos o sargaço, 
pilotamos caravelas anacrônicas
             como o amor 
[e como o que eu escrevo]
mas o que te escrevo, meu morcego,
escrevo de outro lugar, 
uma constelação qualquer, serena,
colonizada por hordas decaídas
que cantam e guincham, 
como nós, os convivas heterônimos
                                 da nossa língua.
sou tua ex-vênus corrompida, antimusa
alegórica e marinha; espero que reconheças
a tarefa sísmica e a mulher que não sabe, que 
não sabe, não sabe o que fazer
com estas ogivas que pendem 
como olivas 
e matam lentamente.  


domingo, 31 de agosto de 2014

antimusa

aquela que traz,
nas cartas de baralho,
notícias sobre a vida silenciosa nos vulcões;
a cigana verdadeira da suas repetições seriadas, meu querido.
com pés de mujique, e linhas siamesas,
para você, o morcego siciliano que gastou sua melhor poesia
com as anteriores: valquírias, rosas, lobas e
todas as meninas prodigiosas, musas indiscutíveis;
sua barba ensopada de sangue, seus sonetos escandinavos,
suas certezas de amor jurado na carne trêmula.

mas eu, eu tenho um passado romeno; um coração eslavo
de proporções gregas, com colunas e templos em ruínas.
partilho minhas agruras conjugais com a moça alta da padaria,
seus dois filhos e uma casa na baixada, anulada entre tijolos
e turnos de trabalho forçado.
mas ainda, minha alma não é legível, passível de ser extraída
em formato compatível
com o seu sistema, meu amor.
paga-se um preço pela serenidade doméstica, eu pago o preço
de ser pixelada por você, serenamente; um holograma ornamental,
esvaziado e preenchido,
repetido até a exaustão dos nossos membros difusos.
a inconsistência de conteúdo
do amor há que ser forma
e caminho.
uma forquilha aos pés de cabra de onde
se desdobram barbatanas, justo onde havia
apenas respiração
e um breve entorpecimento noturno
da pele.


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

este corpo

solfeja vapores acres
e cores intersticiais
um girassol de van gogh no peito aberto
de feridas granuladas por bicos de aves mesozoicas
e suas asas intercaladas, retóricas.
este corpo flamula camadas de carne antibiótica
por uma cidade de artérias e cânulas intravenosas.

exibo satisfeita, no entanto,
um colar moçambicano de dentes
arrancados
pendendo pelos seios
siameses e africanos.

tenho sede
no baço e a língua escapole
pelos lábios; meço navios fantasmas
e náufragos, com os braços içados, noite e dia,
ingurgitando na pele sovada queixumes
de senhoras estrangeiras com sombrinhas floridas
e joias guardadas em cofres,
noite e dia
um zumbido estertor,
tenho sede pelos braços, pelos cotovelos
e nos tornozelos rompidos; este corpo não é meu.

este corpo acende-se
como um lago
em noite de solstício;
um festim de ossos
a celebrar o fato notável
incompreensível do verão.


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

"get lost, kiddo" - Anna Olivia Thomas


"se manda, garotinha",
você diz, entre poças,
entre roupas e esgarçamentos,
enquanto arrumo
às pressas uma mala de mão,
trêmula, sem calcinhas ou
um único item sequer
de necessidade
ou intenção.

"get lost, kiddo",
he says to his antimuse,
and she fades deeply into
the wall as she 
was meant to do 
ever since he met her 
among the reeds,
[shapeless and destituted]
to the course of virgil's 
doomed love and far
and far and beyond it too .

"se manda, garotinha"
é a frase que sentencia
um sufocamento,
um potencial assassinato
literário. cai a ortónima
que amas, cariño muñequito

e a heterónima
que sobrevive
não fala uma só palavra
da sua língua, camarada.
a moça que sobrevive,
sobrevive embaixo d'água,
tem sangue nos lábios
e dentes afiados, é
uma dama de espadas
que vive no lume crestado
em bordas cinzeladas
de vulcões adormecidos,

cuidado,
cuidado.



quinta-feira, 7 de agosto de 2014

a vida nos vulcões


dizer-te que a tua proposta
de cirurgia é válida, meu amor:
seccionar a simbiose brutal
dos teus excessos e dos meus 
me parece menos absurdo
que este hálito dionisíaco, que não se dissipa,
que não se dissipa e me precede, exasperada, 
em dobradiças matinais,
quando vens, agitando os braços, italiano
e compacto, sobretudo quando vens, meu amor, 
coiceando alho-poró por toda a sala,
ungido por um urano qualquer desembestado,  
até o ponto inabalável de fulgor,  
um netuno mergulhado em chamas azuis inflamáveis,
invertidas como o arcano dependurado do tarot.

no fundo pode ser simples, querido,
este quinhão trêmulo de carne acesa
no desvão das coxas ensina
a todos que acalentam silenciosamente 
um grande tóxico terror íntimo,

o mistério impronunciável do amor.


terça-feira, 22 de julho de 2014

vênus em uso

conhecerá os ângulos
úmidos
de cada morte miúda
a cada vez, a cada vez,
a
cada
vez,
a cada vez conhecerá a fundo
o estrecimento do núcleo lúbrico
que me parte ao meio
em duas:
a pura delicadeza em fúria;
das nossas pelves conjuntas
escorrerão sucos acidulados
em giros escarpados, sonoros,
até o fim,

e que não haja fim, até que
haja fim, até
que eu diga que houve tudo,
menos fim.

sábado, 19 de julho de 2014

pequenos monstrinhos de olhos verdes de cigana oblíqua e dissimulada

a tarefa
de soçobrar a brasa
na fricção do sonho
é doce
e monstruosa.
fujo, finjo, escapo
aos saltinhos,
corrompida,
por ruas aladas,
engulo plumas, sugo a sujeira
dos dentes
com a língua forcada.
há,
sem dúvida,
nesta carta
que seguro
um punho

aberto
de céu puro
todo e completa
mente seu.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

"carta a um morcego-leão por ocasião de um casamento" [às 3h40 da manhã]

Te escrevo a mão, prestes a entrar, pé ante pé, nesta casa de gelosias e biombos imaginários, pois sei que uma vez dentro, surgirei com mais uma, essas que já me são tantas - heteronímicas e pérfidas, doces ou covardes - incontáveis, craqueladas, até agora. Somos duplos e múltiplos, como peixes, meu amor.

          A sua respiração já me frequenta há tempos,
          à distância, antes até mesmo de nos encontrarmos
                   [pela primeira, pela segunda vez?]
          e me vejo obrigada a reorganizar o meu corpo
          ao teu ritmo sonar, à tua pulsão,
                                você, que é tocado pelo fogo

e que secou minhas lágrimas como se nunca tivesse existido
                                                                         água neste poço.


Ainda não sei bem o que fazer de ti, o arqueiro inflável de setas perigosas. Clown ébrio, exu insondável.
Não sei como me manter a salvo de tua sorte jupiteriana e do cortejo bacante dissimulado de caçadoras argentinas, dançarinas de mastro e esguias valquírias, 
                                                                           que andam no teu rastro.
       
Desconheço a extensão de todos os teus nomes, dos meus e dos que virão. O signo do duplo é a nossa casa e nessa casa só se entra uma vez.

Há meses que as moedas se avizinham e anunciam um andarilho. Ouço teus cascos ao fundo.
O baralho deita sobre a toalha da mesa o jogo do prestidigitador, um mago de dedos rápidos e palavras afáveis, carregando livros sobre os ombros e versos sob a pele de lobo.Sim, os oráculos delineam o contorno 
de um marido. É isso o que você é? - me diga

e eu prometo contar-te dos filhos gêmeos que profetizei na noite 

em que pusemos os olhos um no outro.

sábado, 12 de julho de 2014

<>

o resto é paisagem.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

"invernal"

tenho cultivado entre dedos
enregelados
um desejo mineral
de imobilidade

como têm
as primeiras
rochas calcárias

uma existência
exaustiva
de liquens sobre superfícies
erodidas dia após dia, gota
sobre gota hirsuta

[a consciência
do grão se faz lentamente

impermeável sobre mim]

devasta
paragens

de um verão incompleto
e talha fendas interiores
adormecidas como bestas
uma vez queridas

segunda-feira, 30 de junho de 2014

caranguejos de julho não andam para frente

aceitar a loucura serena,
o magma que brota
da síndrome das pernas inquietas.

[aquilo que não se pode ter, não se pode,
não se pode ter.
o que não tem volta,
e o lugar para onde sempre
se retorna,
tendo jurado nunca mais voltar]

há qualquer coisa de prodigioso
nos dentes trincados,
patas contritas e
nesta decisão vital tomada
em círculos.

sim, os gorgolejos esquivos
não evitam a catástrofe brutal
de uma vida ridícula;
não antecipam, ainda, a tragédia
de se conseguir exatamente
aquilo que se deseja.








sexta-feira, 27 de junho de 2014

a vida submarina das estátuas



se faz
de feixes de luz
em rochas
calcárias

e
ausências infantis
sob vastos
oceanos

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sobre o motivo dos aplicativos de tarefas e produtividade não darem certo comigo

a  tarefa
primordial
do dia
é irisar
os poemas
até a abrandar
a brasa

"a virada do ano chinês"

há quem contabilize
a passagem lenta dos anos
a quatro patas e dentes

[você sabe que sou dessas]

aprendi
que, fracionado pelo calendário lunar,
meu caldeirão de alças de jade
estampa milênios
de copas e espadas no peito - ainda que
um trigrama, um royal flush,
[ou outro trovão insolúvel]
não revolvam o nosso problema.

o fato é que coelhos ao molho pardo
não apetecem
ao apetite de meus morcegos;

e você continua resmungando
outros cardápios, frases azinhavres,
enquanto embalo galos de Chagall
e danço nua com tigres
hindus no ano do metal e do fogo.

me acusará de supersticiosa, percebe,
pois sabe que
consulto, nas primeiras
horas azuis da manhã,
o livro das moedas e varetas
e choro, despetalando tertúlias,
madressilvas,
que encurvam
as tuas escápulas em escarpas,
situando
teus cascos orientais de cavalo
em cordilheiras distantes
tibetanas, emudecendo-me de vez
o som do sobrevoo breve gutural,
que permanecerá bem,
ainda bem,
ainda na minha garganta,
por muitos longos anos.







terça-feira, 10 de junho de 2014

Ritinha Temporal*

[você],
que arrebata vertiginosa
morcegos do incêndio,
figura em espelhos baços,
com a mochila cheia de empáfia
e rimas brancas,
arruinou a minha vida
[por delicadeza].
ainda guardo no armário
seus estilhaços,
seu vestido de raposa,
a trança holandesa
na gaveta.
encaixotei por medo
a nossa criança estrelada
de mãos gretadas
sob a cama, mas eis que
um bater de asas, de repente
a reconstrói
inteira em fragmentos.
ouço o teu caráter difícil
de ciclone litorâneo
encrespando a superfície
dos cílios, a chuva de vento
a sacudir venezianas, abafando
seus gritos
entre os travesseiros.

*dedicado à personagem de José Louzeiro, Ritinha Temporal, que marcou a minha infância com morcegos, e uma estética protogótica audaciosa de uma típica plutoniana.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

ninando o monstro

pequenas amostras suaves
de inferno, preciosos cascos

me embalam
no ritmo da cantilena antiga
[tão minha conhecida]
de atabaques e alambiques
de pinga sintética

a melodia se repete
num crescente, frenesi
que promete fundo, mas
para retornar sempre ao mesmo ponto,

à mesma pausa,
imobilidade mórbida.
para onde jurei nunca mais voltar

um pedido educado:

que ninguém afirme nunca
que a loucura é outra coisa,
senão uma profunda ironia
do retorno, uma inevitabilidade circular
que ignoramos para seguir em frente
e de volta
e de novo.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

"autogeografia infame"

há que se pagar um preço
pela tentativa risível
de erigir uma pessoa
sobre uma falha sísmica.

estátuas de sal
não são realmente pessoas,
percebe?
dissolvem-se
em nevoeiro marítimo
antes do amanhecer:

meu demônio-meridiano
é uma mulher de corpo ampulheta
[um duplo]
e honestamente,
não sei bem o que fazer
                        com tantas curvas.

a mim, sempre agradou o sul
para onde escorregam
                  [salvos do abate]
todos os novilhos brancos
e também os pardos;

a verdade é que
um pacto
com o trópico de antes
me mantém
ainda por aqui,
entre os comensais.

mas tenho brotado
oceanos
[como uma boa menina
- em segredo]

para fugas eventuais.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

On being the fifth girl

"sendo a quinta garota"

não temos que esquadrinhá-la
[absolutamente]
a quinta garota exibe apenas
forquilhas e ostras imperiosas
nas mãos que gesticulam
em segredo.
quiromantes e astrólogos sugeriram
a arquitetura de um desvio,
mas a verdade é que
a cor que às vezes te visita
frequenta-a sempre
em colapso
e tinge os escombros
em cada um dos ângulos secretos.

há uma vênus furiosa
alojada na quinta casa,
logo depois da suave curva -
imbuída do suave extermínio
das núpcias
sísmicas
e hordas, legiões inteiras
daquelas que a antecedem
na tua linhagem canina.

- não que isso importe.
mas há a dificuldade
dela em fazer cintilar
o traço:
o braço que ordena
a mão
convulsiona os dedos,
arrisca um sulco
feito de pólvora riscada
o punho hirto
de arpão.

ser tua quinta garota
significa não ser a primeira,
tampouco a última:
- não que isso importe.
é que
não há tempo
para donzelas catalépticas
renascentistas.
a cor que te tinge
é a mesma
que a oprime.

ser a quinta garota
é ser pura ironia
de impermanência e dúvida.
a doce oportunidade de ser
promessa pulsante
e queda-livre
[sem dobraduras?]
em mergulho duplo
de irrefreável
velocidade.

[trad. de Isadora P. O original é impronunciável]

"orientações a um cavaleiro no ano do cavalo"

não há retorno
          deste ponto da estrada


da minha língua
ouve-se o retinir
metálico do teu dorso
desperto de montaria
e o eco vagido de cabritos
degolados

não há retorno
           deste ponto:

tome
aquelas
rotas de viagem
        repletas de penugem

para
      onde jurei
      nunca mais
voltar

sábado, 10 de maio de 2014

Juniper

essa criatura cancelada
cruzará um continente amanhã
[abrindo uma grota
na mulher calada sentada à beira
da península do livro]
tingirá com cores de chumbo
a vontade de passear por campos
de pólvora
e abrirá a outra,
[aquela que se move plumosa,
a voz melíflua enchendo
as páginas até a margem]
com chave
de fenda
e
tesouras retinindo


não cabem condolências no momento
apenas aves

e giros
suaves
em torno do címbalo

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Dois poemas para Rita

Por Leonardo Marona




"não é a sua gata"

não é a sua gata, sou eu
o urso polar que você salva
dos predadores com bravura,
sou eu este urso com os pelos
congelados e os olhos inundados
da substância licorosa do amor.
as infecções são o nosso laço,
nossos rins, anéis ácidos de casamento.
o mar por qual navegaste em sonho
era verde pálido como o mar de inverno.
máquinas de abater montanhas situavam
a nossa mais rara permissão de abate.
sugar pie, não é a sua gata, sou eu
o urso polar que você salva
dos predadores com bravura,
ritmados e mais perto do acerto,
seguem os versos batidos a calo,
é preciso uma máquina de abater,
a força para erguer um urso polar,
a sereia põe suas brânquias a prêmio.
no fim brincaremos com baleias e golfinhos.

(meados de abril, sem data definida)



"declaração de amor no dia do trabalho"

silenciam nas ruas as dores do meu ventre.
participo em cálculos de uma infecção cardeal.
minha garganta é estreita para o acúmulo de teus olhos.
sonho com maçãs e mulheres de três metros e sumo.
há uma perda que precisamos assumir para dar início.
somos a onda arrasada por um quilômetro de pedra.
preciso dessa pontuação, do contrário seria feliz.
seu eu soubesse ao menos tocar trompete e usasse um lindo chapéu.
no teu segredo envolverei uma banheira com uma árvore falante.
as alturas recentes apenas atestam um adorável problema.
as tripas dissolvem a química do mais novo despertar.
são confusas as combinações desse constante prazer.
foges pelas águas com quatro patas, foges do tiroteio.
nos cruzamos em naufrágio e haveremos de, juntos, chegar à ilha.
e as granadas do baixo ventre germinarão em duplos.
considere isso uma carta de amor escrita no dia do trabalho.


(Rio, 1 de maio, 2014)






terça-feira, 6 de maio de 2014

incidente de bodas

beibe,
meu paletó de bolinhas azuis
escolheu dependurar-se no cabide
mais honesto do seu armário;
os sapatos quadrados de flapper
esconderam-se debaixo das suas
inúteis gavetas de cuecas,

e já avisaram: não partirão.

ainda é cedo, meu bem,
mas não temos recursos,
tampouco a resistência
dos laicos vãos para
combater a cólera
dos objetos -

antevejo um anel incognoscível
[ainda pouco visível a olho nu]
cingir-se derradeiramente
no meu dedo esquerdo 

- o dedo que conduz ao coração.

aquela coroa de hortênsias
pende, suspensa no ar,
com véu, auréola sorrateira,
prestes a deitar sobre mim
chuvas de arroz e riscos
de tinta azul e raios
                 e raios
                   e raios
. as sutis monções que desem-
bocam no sul
de um país imaginário
nos trazem bênçãos: elas vêm
em tríades de cobre, chumbo

e outros metais nobres
que a-pa-re-ce-rão
intocáveis, imensuráveis,
em nome dos objetos
sólidos e dos que nunca o serão

virão também aqueles que representam
        os noivos e noivas gasosos
                 que outrora mergulharam 
                        de livre escolha
                               ao olho ígneo do furacão.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Aula de francês com Lucrécio.

Como reverter um coup de foudre? - ela pergunta, exasperada.

Não é reversível, docinho - ele responde sorrindo.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O que você diria a Rita? -bot






Eu quero mais terra e fogo,

mas os sonhos continuam marítimos


Quero uma redundância

mais dispersa que duna














escandida em intervalos,

Quizás, quizás, quizás, quizás, quizás.













She was born under the ibises









sempre soube:
a verdade, ela mora no segundo andar.

perdi o meu anel de saturno ainda pequena,
brincando no mar.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Contos de verão

Quarenta graus aqui na tijuca.
Vi agora há pouco no termômetro quando atravessei a praça para comprar sorvete de doce de leite com torta alemã. Já houve dias piores, pensei. 
Não sei se foi o gosto apressado do sorvete derretendo no calor intenso ou uma memória corporal despertada pelas longas gotas de suor escorrendo pelo meio das costas, mas eu me lembrei de outros janeiros, de outras paisagens.
Me lembrei de uma infância passada dentro da água. E com ela, vem o estranhamento que quase sempre acompanha a memória de coisas líquidas no meu caso, principalmente quando me dou conta da minha precária familiaridade atual com o mar e as quedas d'água, água doce ou salgada. Já fui fascinada por tudo o que é marinho e submerso, mas agora, mesmo nas poucas vezes em que me lanço na água, vejo os meus movimentos parcos e pesados, a resistência invencível e retorno sempre à superfície, pelas leis do empuxo e do medo. 
Sim, o medo. Eu me lembro sim de sentir medo, mas não da água gelada ou dos peixes que beliscavam a minha pele quando eu ficava completamente imóvel, apenas flutuando, quase sem respirar. Mas algo do fundo me assustava, a pressão da água sobre a cabeça me forçava a interromper o mergulho e eu voltava rápido para respirar.

O verão costumava ser a minha estação preferida. Férias, natal, aniversário, primos, praia e sorvete. Um crescente irresistível para a minha expectativa de criança de cidade pequena, ainda que litorânea. A casa cheia, os almoços longos e tardios, os sorveteiros na porta de casa e o vento zumbindo pelas telas de mosquito e venezianas azuis. Todos os dias de janeiro, uma rotina doce se desenrolava: um relógio interno infalível que me punha de pé antes do resto da casa para tomar às pressas um leite com nescau e pão com manteiga já de biquíni e me lambuzar de filtro solar e hipoglós e partir para a lagoa. Atravessava a rua olhando "atentamente para os dois lados", como fora ensinada, na ponta dos pés para evitar os frutinhos pontiagudos das casuarinas pela areia e dava início ao que parece ser o único ritual que eu daria conta de criar na minha vida. 
Primeiro a temperatura. Nada se comparava à água ainda gelada do começo da manhã  e eu me ajustava rapidamente, como se pecilotérmica. Depois a caça das cochas em espiral, que eu chamava de "castelinhos", para levar para as aulas de arte do colégio, depois que  acabassem as férias. Por último, mais tarde, já com os primos e tios acordados, alimentados e devidamente protegidos do sol, dávamos início a tentativas tenazes de capturar alguns peixes. Quase nunca conseguíamos apanhar algum, mas quando um peixe mais velho ou doente deixava-se prender pelas nossas armadilhas de sacolas plásticas e redes, fazíamos a festa e prometíamos amar e cuidar dele pelo resto de sua curta vida. Não entendíamos porque ele sempre estava morto ou explodia antes do final do dia, pois trocávamos a água com diligência e o alimentávamos com migalhas de pão. Nunca havia nos ocorrido que peixes de água salgada não sobreviviam exatamente bem na água da bica, mesmo que num balde grande e espaçoso. Ainda levaria alguns anos para que entendêssemos melhor as leis da osmose.
Havia um grande intervalo que começava quando o sol ficava quente demais para as crianças e éramos obrigados a sair da água, criando uma espera interminável pelo almoço, que preenchíamos enquanto secávamos as roupas de banho na varanda, lambendo o sal que restava no corpo e brincando de fazer exóticos ensopados com as papoulas do jardim da minha avó. Depois do almoço provavelmente já estávamos suficientemente secos para assistir desenhos animados no sofá plastificado - uma artimanha típica das casas de veraneio - espiando com o rabo do olho o relógio de parede apontar para o quatro, quando o sol estaria baixo de novo para finalmente voltarmos para a lagoa. O final da tarde trazia sempre alguns concursos, ou de cambalhotas, bananeiras no fundo da lagoa, ou de castelos de areia, que eu quase sempre vencia ou ainda, nas semanas de lua cheia, quando o avô criava uma competição para o neto que primeiro avistasse a lua despontando no horizonte, na direção da praia oceânica. O prêmio era um sorvete de duas bolas no bar do Jesus, atrás de casa. Mas todos nós ganhávamos sorvetes de qualquer forma, o que estranhamente não desencorajava qualquer espírito esportivo nosso. Já enrugados e com os lábios partindo-se de sal, alguém vinha da casa para nos buscar, pois era hora de tomar banho e lanchar. E novamente as disputas das crianças pela ordem do chuveiro e a aposta de quem ficaria pronto primeiro para assistir os seriados japoneses de luta que já iriam começar.

A memória é essa coisa estranha, fio que revela mais emaranhados do que novelo. 
Já sabia intuitivamente que sorvete se ligava em mim à ideia de lar e água salgada, mas não tinha certeza do motivo da minha recusa ao mar desde então. Fico sob a impressão de que interditei um oceano perdido e que vou passar a minha vida tentando reconstruí-lo, até finalmente poder me mover na água com leveza e graça de novo.