Desencaixotando Rita

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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

carta para Liliana I

As notícias por aqui, pequena, não são brilhantes, não mesmo.
Você há de lembrar daquela tarde insuportável, não muito antes da primeira mudança, quando eu prometi em nome de todos os deuses do panteão-cosmogônico-do-meu-minúsculo-universo-de-luz-e-sentido que eu preferia engolir os punhos fechados das mãos a usar de novo qualquer uniforme.
Pois bem, oncinha, cá estou eu novamente. Vestindo uma camisa sabe-se lá de quê, sapatos sóbrios, fechados, para ganhar alguns trocados. Por dinheiro, por que não? E por que mais faríamos algo assim? O dinheiro não é um fim em si, você sempre fez questão de frisar, mas um meio, como outros e eu - como outros, como outras - preciso, por céus, de meios. Preciso de fins também, mas isso não pode ser tratado nesta carta. Seriam necessários um sacerdote, uma lua cheia e muitos lenços perfumados para um coisa dessas e nós sabemos que cerimônias me deixam incomumente nervosa. E transpirante.
Eu e você fizemos e ainda faremos muitas coisas inviáveis, estúpidas, para sobreviver, mas eu não esperava isso novamente. Ser babá de mini-coelhos desesperados, confinados num cercado (baixo demais, oncinha, baixo demais, imagine você) numa festa de aniversário de uma criança milionária de 1 ano; assistir diante dos meus olhos arregalados mais dinheiro sendo gasto numa comemoração infantil  do que eu provavelmente jamais colocarei as mãos. Para isso eu decerto estaria pronta. Mesmo que 'pronta' signifique apenas aquela micro-coragem epidérmica que prepara o corpo para um salto seguramente doloroso direto no rio gelado; aquela resignação primitiva que antecede um desconforto voluntário e inútil.
Eu também estaria pronta para sacudir os peitos metida num vestido de flapper, com franjas irisadas, recebendo 200 paus para fazer figuração num casamento temático dos anos vinte, equilibrada em saltos quadrados, com um baleiro dependurado no meu pescoço incensando 50 doses de absinto e tequila direto para o meu cérebro entorpecido, enquanto homens de paletó e ternos caros bebem uísques caros e me passam cantadas baratas.
Virar a noite dobrando 200 tsurus de origami para a cenografia de um curta-metragem. Respirar fundo e encarar a próxima, sempre. Sempre achei que isso me deixaria mais forte, acreditei que estava criando caráter, mas acho que estava, na verdade, criando uma personagem, oncinha. Duas, para ser exata: eu e você.
Mas eu não sei, uniformes têm uma obscenidade da qual eu não consigo me livrar. A vida transcorre, as pessoas mudam, evoluem, asseguram seu lugar, cheias de orgulho, na cadeia alimentar, casam-se, separam-se, têm filhos, morrem eventualmente, e eu - eu completo trinta anos e os uniformes retornam, certos como andorinhas demoníacas no verão.
Os trabalhos mal-pagos e as rotas de fuga.
Underachiever. Eu me lembro de ter ficado um tanto chocada quando o peso do sentido desta palavra traduzida por você - quantos anos eu tinha? doze, treze? - despencou em mim feito bigorna e nunca mais se içou. Como é que se traduz a infinita melancolia de uma performance sempre aquém, não por falta de tentativa, esforço, mas por um trágico casamento entre a falta de talento e uma catastrófica carência de ousadia, falta de cara de pau mesmo, um mínimo de vigor que o valha, um senso de humor que seja: ausente.
As notícias, oncinha, não são brilhantes, eu receio. Tenho vibrado intermitente por entre dobras bem-fornidas, opacas, de interstícios e líquidos e, se me perguntar honestamente, não tenho aprendido muito sobre isso tudo. Tudo indica que sou impermeável às lições de vida e a toda sorte de edificação de si.
Tenho tido sempre o mesmo sonho, repetidas vezes. Peixes, pedras e sal. Um retorno ao mesmo ponto, do qual chego a duvidar se algum dia eu, de fato, parti. Uma paisagem familiar, aderida às retinas, como um cromaqui, holograma alterado como pano de fundo para tudo o que se vê.
Andei experimentando algumas alturas e paguei, como uma boa menina, o preço do ar que se respira com ferocidade nos altiplanos. Não me entenda mal, gorduchita, eu repetiria cada passo, cada levedo engolido às pressas, os copos roubados dentro da bolsa, as dúvidas e as perguntas irrespondíveis. Cada tarde passada andando do quarto à cozinha, da cozinha ao banheiro e de volta ao quarto e assim, por diante, duzentas vezes, até que a pele das mãos estivesse mais fina e o corpo desidratado pelo exercício do mais puro desespero. Não vejo como seria diferente se você estivesse aqui. Eu continuaria dormindo no mesmo horário, irrevogavelmente e cometeria as mesmas gafes em público, com ou sem você para tingir meus cabelos onde não alcanço. Isso não quer dizer que não sinta a sua falta. Mesmo com essa dupla negativa freudiana que você sempre apontava no meu discurso, no formato de um ferrão.

Espero que esta carta a encontre [bem] e que possamos nos ver em algum futuro possível. Estou esperando, como estive esperando neste últimos quatro anos, a sua carta e quem sabe, o seu retorno.

Com amor,

sua

[...]




segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

"canção para salvar um morcego"

essa é para você,
que permanece
em revoada, debatendo-se
no telhado, porque sabe
[e eu sei] que voou demasiado
alto. tenho um poema cheio
de estrelas fixas e nenhuma
ideia de como seguir a vida.
você equilibra-se a custo
na crista, como um jovem
netuno precocemente envelhecido
e nós sabemos que isso é mais um
dos seus prodígios. você voa alto,
e tem mar no início e eu estou à procura
do teu poema fundamental, da ideia que
brilhe no escuro, que salve tuas asas de um
arremate prematuro, trágico. talvez eu precise
de ajuda. tenho escrito como sonâmbula, possuída
de uma pequena loucura, com alprazolam, sob efeito
de uma engrenagem que é tua. estou à procura
da ideia original, o experimento magnético que
polarizou nossas cargas tão explosivas e
essa é para você, que bate de encontro ao telhado,
porque voou demasiadamente alto. porque o teu
nome tem mar no início e enquanto decidimos,
costuro uma saia de bailarina e pinto as unhas de
vermelho, porque isso sempre é um alento e eu
prometo que a grande ideia virá, como virão
as estrelas no meu antebraço e os naipes de baralho
nos pulsos.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Duas resenhas: Leonardo Marona & Sirlanney


Óleo das horas dormidas, de Leonardo Marona (2014)

"Óleo das horas dormidas" (Ed. Oficina Raquel, 2014), terceiro livro de poesia de Leonardo Marona, pode ser lido num fôlego só como um relato de uma longa, interminável viagem. Marona tem sua voragem rimbaudiana e seu livro resta, pende como vestígio, como marca, cicatriz indelével no corpo após uma longa doença - a sua very own temporada no inferno.
A estrutura cindida do volume já nos apresenta dois ritmos, duas estadias: uma leve, um ressonar amoroso e solar; e em seguida uma viagem pesada por um sono escuro, denso, por entre salas de hospitais e torpores medicamentosos, quedas, perdas de voz, sussurros.
Marona tem uma estrutura muito particular, dificilmente escapa a uma forma constante que persegue, uma espécie de arquitetura original perdida antes que fosse possível aprender a engendrar sílabas, ainda mais versos. Seus poemas montam-se como blocos; torres de versos. E seus versos possuem peso e cimento, argamassa concreta, não há nada de fluido no seu estilo; o número de sílabas poéticas é mantido constante, como um animal que se doma a custo, um preço pago ao fogo que o compele ao primeiro movimento de escrita. 
Se, em alguns momentos, ele utiliza a palavra como bisturi cirúrgico, acessando uma verdade dura, rochosa: "ainda não existe o poema fundamental / para mulheres ainda não existe é fato / um homem que seja apto para a mulher", em outros, ele parece adocicar-se, permite-se resfolegar apaixonadamente: "eu quero te engordar / eu quero te engordar / eu quero te engordar (...) algo precisa acontecer uma catástrofe / do contrário eu estarei apaixonado / e apaixonado você disse para isso não é preciso muita coisa". 
Mas não há como deixar de perceber a lucidez viperina que ronda até os versos amorosos, os poemas apaixonados: "sós seremos, mas juntos poderemos ser sós e felizes / não há um esquema prateado que dure uma vida completa / dê-me sua mão apenas e aprendamos a ser aprendizes, / não precisamos de conjugações futuras ou palavra reta."
Essa celebração do instante, do deslumbramento com o pequeno e com a grandeza que há nas pessoas, no cotidiano e nos acontecimentos que escapam à nossa atenção, todos esses são temas que comparecem em seu livro. Leonardo parece ao mesmo tempo saber algo de muito importante, de fundamental sobre a natureza do amor, o apaixonamento, sobre a dolorosa duração da paixão, seus milissegundos de êxtase e desfiladeiro e, da mesma forma misteriosa, desconhecê-los completamente.
Há, entretanto, um conhecimento intuitivo dos ritmos, dos movimentos de contração e expansão do mundo, caos e ordem: "e despedir-se é lançar-se através da vidraça / os corpos perdidos que um dia pensamos: / têm frio, mas apesar de tudo, veem a luz / verde entranha tracejada de escuro cínico". 
Em "Óleo das horas dormidas", Leonardo Marona crias rápidas aberturas de luz, de grande beleza, deixa-nos, contudo, entrever não apenas o zênite, mas também seus poentes, pois no fundo "somos o que podemos ser e não podemos".

Magra de ruim, de Sirlanney (2014)

O livro da Si é um antigo livro de amor disfarçado de vanguarda. (Leonardo Marona)

Sirlanney veio de brinde com um grande amor, o maior, e eu confesso que a observei com atenção, um pouco desconfiada até, a princípio, dessa capricorniana (dupla!), com alma de travesti e sentimentos profundamente femininos - e como fundamentalmente feminina, Carlos Saura já poderia dizer dela: como os gatos, as mulheres não vêm quando chamamos e vêm, sim, quando bem querem. E Sirlanney encarna essa frase de Carmen, assim como também poderia figurar em uma chanchada italiana ou numa nouvelle vague francesa. Tem dentro de si uma diva envelhecida, uma Norma Desmond, pronta a construir ao seu redor um mausoléu de amores e glamoures perdidos. 
Não é comum deparar-se com uma menina de trinta anos tão ambiciosa (e ao mesmo tempo tão dolorosamente melancólica acerca de seu talento) e tão determinada a ser. Ser. Apenas isso.
Porque "ser", Clarice nos ensinou, é uma dor primitiva, universal e não tem fim. Sirlanney, assim como Clarice, ainda que de uma forma completamente sua, é capaz de transformar, de encenar essa batalha já perdida de início nos seus quadrinhos.
Usando a [S]i mesma como personagem, única, soberana, claustrofóbica e magnânima, somos apresentados à "Magra de ruim" (Circuito Ambrosia, 2014) e suas aventuras, as quais, muitas vezes, não escapolem ao universo infinito de sua própria cama, de seus amores, sempre doloridos e dilemas existenciais que vão desde a escolha do penteado e a desistência hilária do próprio suicídio, porque os clichês, esses não são permitidos.
O traço de Si vai tomando consistência ao longo dos anos. Assistimos algumas sutis metamorfoses sendo operadas nesta compilação, que vai de 2012 até meados de 2014. Suas aquarelas cada vez mais siderais, beirando, invandindo as margens do papel. Sirlanney entendeu que há algo de si que transborda e daí a escolha da água para o elemento material de sua criação.
Como Hannah Horvath (Lena Dunham), de Girls (HBO) e a Frances Ha (Greta Gerwig), de Noah Baumbach, Si não tem medo de errar e seus erros são acalentados como doces feridas, como cicatrizes e tatuagens arrependidas, mas sustentadas com humor e um pouco de auto-escárnio saudável. 
Em "Magra de ruim", o corpo é um experimento de beleza e estranhamento, uma engrenagem de dor e deleite e, sobretudo, um aprendizado sobre como ser si mesma: como na coreografia final de Frances Ha, onde os movimentos inexatos apenas parecem erros.