Desencaixotando Rita

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domingo, 1 de fevereiro de 2015

Duas resenhas: Leonardo Marona & Sirlanney


Óleo das horas dormidas, de Leonardo Marona (2014)

"Óleo das horas dormidas" (Ed. Oficina Raquel, 2014), terceiro livro de poesia de Leonardo Marona, pode ser lido num fôlego só como um relato de uma longa, interminável viagem. Marona tem sua voragem rimbaudiana e seu livro resta, pende como vestígio, como marca, cicatriz indelével no corpo após uma longa doença - a sua very own temporada no inferno.
A estrutura cindida do volume já nos apresenta dois ritmos, duas estadias: uma leve, um ressonar amoroso e solar; e em seguida uma viagem pesada por um sono escuro, denso, por entre salas de hospitais e torpores medicamentosos, quedas, perdas de voz, sussurros.
Marona tem uma estrutura muito particular, dificilmente escapa a uma forma constante que persegue, uma espécie de arquitetura original perdida antes que fosse possível aprender a engendrar sílabas, ainda mais versos. Seus poemas montam-se como blocos; torres de versos. E seus versos possuem peso e cimento, argamassa concreta, não há nada de fluido no seu estilo; o número de sílabas poéticas é mantido constante, como um animal que se doma a custo, um preço pago ao fogo que o compele ao primeiro movimento de escrita. 
Se, em alguns momentos, ele utiliza a palavra como bisturi cirúrgico, acessando uma verdade dura, rochosa: "ainda não existe o poema fundamental / para mulheres ainda não existe é fato / um homem que seja apto para a mulher", em outros, ele parece adocicar-se, permite-se resfolegar apaixonadamente: "eu quero te engordar / eu quero te engordar / eu quero te engordar (...) algo precisa acontecer uma catástrofe / do contrário eu estarei apaixonado / e apaixonado você disse para isso não é preciso muita coisa". 
Mas não há como deixar de perceber a lucidez viperina que ronda até os versos amorosos, os poemas apaixonados: "sós seremos, mas juntos poderemos ser sós e felizes / não há um esquema prateado que dure uma vida completa / dê-me sua mão apenas e aprendamos a ser aprendizes, / não precisamos de conjugações futuras ou palavra reta."
Essa celebração do instante, do deslumbramento com o pequeno e com a grandeza que há nas pessoas, no cotidiano e nos acontecimentos que escapam à nossa atenção, todos esses são temas que comparecem em seu livro. Leonardo parece ao mesmo tempo saber algo de muito importante, de fundamental sobre a natureza do amor, o apaixonamento, sobre a dolorosa duração da paixão, seus milissegundos de êxtase e desfiladeiro e, da mesma forma misteriosa, desconhecê-los completamente.
Há, entretanto, um conhecimento intuitivo dos ritmos, dos movimentos de contração e expansão do mundo, caos e ordem: "e despedir-se é lançar-se através da vidraça / os corpos perdidos que um dia pensamos: / têm frio, mas apesar de tudo, veem a luz / verde entranha tracejada de escuro cínico". 
Em "Óleo das horas dormidas", Leonardo Marona crias rápidas aberturas de luz, de grande beleza, deixa-nos, contudo, entrever não apenas o zênite, mas também seus poentes, pois no fundo "somos o que podemos ser e não podemos".

Magra de ruim, de Sirlanney (2014)

O livro da Si é um antigo livro de amor disfarçado de vanguarda. (Leonardo Marona)

Sirlanney veio de brinde com um grande amor, o maior, e eu confesso que a observei com atenção, um pouco desconfiada até, a princípio, dessa capricorniana (dupla!), com alma de travesti e sentimentos profundamente femininos - e como fundamentalmente feminina, Carlos Saura já poderia dizer dela: como os gatos, as mulheres não vêm quando chamamos e vêm, sim, quando bem querem. E Sirlanney encarna essa frase de Carmen, assim como também poderia figurar em uma chanchada italiana ou numa nouvelle vague francesa. Tem dentro de si uma diva envelhecida, uma Norma Desmond, pronta a construir ao seu redor um mausoléu de amores e glamoures perdidos. 
Não é comum deparar-se com uma menina de trinta anos tão ambiciosa (e ao mesmo tempo tão dolorosamente melancólica acerca de seu talento) e tão determinada a ser. Ser. Apenas isso.
Porque "ser", Clarice nos ensinou, é uma dor primitiva, universal e não tem fim. Sirlanney, assim como Clarice, ainda que de uma forma completamente sua, é capaz de transformar, de encenar essa batalha já perdida de início nos seus quadrinhos.
Usando a [S]i mesma como personagem, única, soberana, claustrofóbica e magnânima, somos apresentados à "Magra de ruim" (Circuito Ambrosia, 2014) e suas aventuras, as quais, muitas vezes, não escapolem ao universo infinito de sua própria cama, de seus amores, sempre doloridos e dilemas existenciais que vão desde a escolha do penteado e a desistência hilária do próprio suicídio, porque os clichês, esses não são permitidos.
O traço de Si vai tomando consistência ao longo dos anos. Assistimos algumas sutis metamorfoses sendo operadas nesta compilação, que vai de 2012 até meados de 2014. Suas aquarelas cada vez mais siderais, beirando, invandindo as margens do papel. Sirlanney entendeu que há algo de si que transborda e daí a escolha da água para o elemento material de sua criação.
Como Hannah Horvath (Lena Dunham), de Girls (HBO) e a Frances Ha (Greta Gerwig), de Noah Baumbach, Si não tem medo de errar e seus erros são acalentados como doces feridas, como cicatrizes e tatuagens arrependidas, mas sustentadas com humor e um pouco de auto-escárnio saudável. 
Em "Magra de ruim", o corpo é um experimento de beleza e estranhamento, uma engrenagem de dor e deleite e, sobretudo, um aprendizado sobre como ser si mesma: como na coreografia final de Frances Ha, onde os movimentos inexatos apenas parecem erros.






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