Desencaixotando Rita

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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Mossoró

Mossoró I 

A primeira daquelas que seriam as duas mais inquietas crianças paridas por minha avó coroou logo no início das chuvas minguadas do 'inverno' fictício do norte, 1959. Fora, ao menos, um parto não muito abafado, a única coisa de que podia se gabar de fato a mãe, pois depois de dezesseis horas de dilatação negativa, a primeira filha viera ao mundo grande e loura, quase fraturando sua bacia, com os ombros curvos do esforço inédito de nascer, curvatura que manteria adulta pela consciência do medo; o rostinho largo e olhos redondos, atentos, faróis luzidios de uma curiosidade que também sustentaria em notável medida pelos anos seguintes, mas não por toda a sua existência, é preciso dizer. Era muito pouco parecida com o irmão, três anos mais velho, a pequena beldade da família, que deslizou como quiabo maduro das pernas para os braços de minha avó em menos de 30 minutos.
"A criança não come", minha avó logo notou. Chupetava o peito quente e empedrado de leite com grande serenidade, mas não sugava propriamente. Acostumou-se a contragosto com a mamadeira, mas seus apetites variavam com as flutuações da lua, ora faminta, ora demonstrando desdém por todos os agrados achocolatados, passando incólume pelo mel e canela que minha avó acrescia ao leite de vaca na tentativa de agradar a sua menina difícil.
Crescia forte, a despeito disso e cada vez mais mostrava traços de uma personalidade crítica, uma sofisticação anacrônica que a ensinou a preparar as suas próprias refeições antes dos cinco anos completos.

Rio de Janeiro II

Virá em breve.

Araruama III

As obsessões seriadas seriam um hobby, quando nada mais poderia ser. A paixão seria desmontada como uma complicada parafernália infantil, reformulada do avesso, porque não importaria mais aquilo que se perde. Mas, sim, os blocos, os pedaços ingurgitados, acrescidos a si, como apêndices mágicos e temporários, perfeitos em seu mistério com prazo de validade determinado e então, quando desvendados, finalmente: o vazio, o platô insuportável e uma nova paixão - uma obsessão fresca e impensável - haveria de ser forjada, ou todo o mecanismo, a engrenagem imprescindível pereceria perigosamente. 
Não há realidade cotidiana que resista aos efeitos tóxicos de uma boa, ou até mesmo de uma má ficção. Os personagens literários, masculinos e complexos, haveriam de ser uma substituição suficiente, com algumas vantagens, inclusive, pois os personagens masculinos ao alcance da mão, ou das pernas, não seriam satisfatórios até que um elemento dramático se imiscuísse, sorrateiro e trágico, tornando-os mais semelhantes a uma ficção qualquer que fosse, barata e impregnada dos lugares-comuns que matam lentamente. Homens casados, uma gravidez indesejada, um aborto clandestino, a desistência de uma filha. E quando faltassem os personagens, viriam os criadores: os escritores, com sua vida difícil e atravessada por um sentido misterioso, dardejante, arpões cósmicos com um centro magnético programado, eles seriam secretamente idolatrados - e mimetizados até os limites da própria capacidade ou da habilidade literária.
Mas todos os caminhos levam de volta ao platô, de onde nada escapa e tudo converge, eventualmente.
O nível de dificuldade sofreria com os anos um aumento inversamente proporcional ao funcionamento do seu próprio metabolismo e os personagens escasseariam, doentes e radiografados por um dispositivo incansável que substitui e derruba, que esvazia e apresenta novidades, como uma fábrica de brinquedos, examinada, contudo, com uma atenção científica e cruel. E viriam as ficções televisivas seriadas, com plots epopeicos e personagens novinhos em folha. Sucederiam-se as paixões, uma a uma, com sua existência circunscrita a cada universo ficcional, frágeis e intensificadas por uma febre renovada a cada episódio. E o lento esvaziamento viria, certo como o entusiasmo voltado para o novo personagem da temporada seguinte.

Em seguida, as artes plásticas. Tubos e tubos de tinta acrílica para tela, aquarelas e crayons, a escolha de diferentes gramaturas e planos maquiavélicos para a compra de uma prensa para gravura acalentados com seriedade infantil. Os experimentos, realizados sempre em tamanho diminuto, como amostras amadoras de um projeto ambicioso, sempre escondidos em pastas, longe dos olhos, ocultos por um constrangimento silencioso que seria responsável pela nova obsessão: o artesanato. Retalhos e retalhos de roupas velhas descosturadas, planos de quilts e macramé, toalhas e barras de vestido bordados em ponto de cruz, teares e tapetes em rag rug. A descoberta da estética boho: bohemian + soho e o início assustador de uma coleção de barbies temáticas, desde buffy, a caça-vampiros até scarlett o'hara. 

Jung, yoga e I ching.

Amendoins assados no forno e programas de culinária vegetariana. E a militância pelas árvores na internet.

E se perguntam pela filha, ela está aqui. Com você. Segue com os olhos as invenções semanais e o desbunde renovado a cada estação. Não basta saber que viver é difícil, tem que viver junto.

Eu te amo, mãe. Em cada obsessão que você porventura enveredar.


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